quarta-feira, 26 de maio de 2010

Teoria crítica e epistemologia na pós-modernidade inquietante: as propostas de Boaventura de Sousa Santos para construção de um novo senso comum emancipatório em A crítica da razão indolente.

Resenha do livro A crítica da razão indolente, de Boaventura de Sousa Santos



Por que é tão difícil construir uma teoria crítica? Este é, para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o problema mais intrigante vivido pelas ciências sociais hoje em dia. Afinal, pergunta ele, se vivemos num tempo em que não faltam situações ou condições que provocam desconforto ou indignação e nos despertam o inconformismo, por que esta dificuldade em construir uma teoria crítica, cujas fontes sempre foram o inconformismo e a indignação?
Boaventura dos Santos vai tentar responder a esta questão em A crítica da razão indolente, primeiro volume de sua obra Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, composta por quatro volumes (A crítica a razão indolente, O direito da rua, Os trabalhos de Atlas, O milênio órfão). Publicado no Brasil em 2000 pela Cortez Editora, A crítica a razão indolente procura definir os parâmetros da transição paradigmática que, segundo o autor, estamos vivendo desde meados do século dezenove e que se define agora, no início do terceiro milênio, como a crise final do paradigma moderno. Neste volume, Sousa Santos realiza uma crítica do paradigma da modernidade e propõe um quadro teórico e analítico que permite pensar a modernidade fora dos cânones do paradigma dominante nos últimos 200 anos.
Distinguindo na transição paradigmática diversas dimensões que evoluem em ritmos desiguais, o autor destaca duas dimensões principais: a epistemológica e a societal. A transição epistemológica, diz ele, ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente de "um conhecimento prudente para uma vida decente" (Santos, 2000:16). Já a transição societal ocorre do paradigma dominante – patriarcal, capitalista, excludente, autoritário, consumista, individualista – para um conjunto de paradigmas de que por enquanto não conhecemos senão as "vibrações ascendentes" (Santos, 2000:16).
Conforme o autor, ao criticar fortemente o paradigma dominante seu livro insere-se na tradição crítica da modernidade mas distingue-se da teoria crítica moderna por pelo menos 3 aspectos principais: enquanto a teoria crítica moderna é subparadigmática (isto é, acredita que é possível alguma emancipação dentro do paradigma dominante) a proposta de Sousa Santos é de uma crítica radical do paradigma dominante. Outro desvio diz respeito ao objetivo da crítica: enquanto para a teoria crítica moderna o objetivo é criar a desfamiliarização, o objetivo da teoria crítica radical é criar uma nova familiarização, é tornar-se um novo senso comum, "um senso comum emancipatório" (Santos, 2000:17). O terceiro desvio em relação à teoria crítica moderna é a auto-reflexividade: enquanto a teoria crítica moderna "não se questiona no acto de questionar nem aplica a si própria o grau de exigência com que critica" (Santos, 2000:17), a teoria crítica radical proposta por Sousa Santos leva ao limite a crítica de seus próprios pressupostos, de modo que "na crítica há sempre algo de autocrítica" (Santos, 2000:17).
A essa altura cabe examinar o que o autor entende como teoria crítica e como ele caracteriza a teoria crítica moderna e as suas limitações, para compreendermos então a sua proposta de fazer avançar uma teoria crítica pós-moderna (que Sousa Santos, para distinguir-se da corrente dominante do pensamento pós-moderno, irá chamar de pós-modernismo de oposição). Conforme Boaventura,
"por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz a 'realidade' ao que existe. A realidade (...) é considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e a tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado" (Santos, 2000:23).
Como pressuposto de toda teoria crítica, diz o autor, está a convicção de que é possível superar aquilo que é criticável no que existe, aquilo que nos causa desconforto, inconformismo ou indignação. O desconforto, inconformismo ou indignação com o que existe, diz Sousa Santos, faz com que nos obriguemos a interrogar criticamente nossa sociedade e buscar alternativas fundadas nas respostas que dermos a essas interrogações.
Essas interrogações críticas e essa busca de alternativas sempre estiveram na base da teoria crítica moderna e foram formuladas com precisão por Max Horkheimer, para quem, conforme Sousa Santos, a crítica contém a condenação das categorias que governam a vida social e a "a luta por objetivos emancipatórios é intrínseca à teoria crítica" (Santos, 2000:25). O autor destaca que a evidente influência de Marx na definição da teoria crítica moderna feita por Horkheimer e acrescenta que, "de facto, o marxismo foi a base de sustentação principal da sociologia crítica de nosso século" (Santos, 2000:25).
Então, considerando um quadro em que "as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos" (Santos, 2000:23) e para o qual as principais categorias analíticas da sociologia crítica do século XX – classes, conflito, elites, alienação, dominação, exploração, racismo, sexismo, dependência – continuam aplicáveis, Boaventura de Sousa Santos pergunta: "por que se tornou tão difícil produzir uma teoria crítica?".
Ao identificar alguns fatores que produzem essa dificuldade Sousa Santos vai apontar as dificuldades de sustentação da teoria crítica moderna. Em primeiro lugar, diz Sousa Santos, "a teoria crítica moderna concebe a sociedade como uma totalidade, como tal, propõe uma alternativa total à sociedade que existe"(Santos, 2000:26). Essa proposição, diz o autor, assenta-se sobre alguns pressupostos que devem ser criticados, especialmente o pressuposto de que há um princípio único de transformação social e o de que há um único agente histórico coletivo capaz dessa transformação. Esses pressupostos, diz Sousa Santos, assentam-se "na inevitabilidade de um futuro socialista gerado pelo desenvolvimento constante das forças produtivas e pelas lutas de classes em que ele se traduz" (Santos, 2000:27) . contudo, estes pressupostos não se sustentam e por isso a teoria crítica moderna está em crise. Diz o autor:
"A nossa posição pode resumir-se assim. Em primeiro lugar, não há um princípio único de transformação social (...). Não há agentes históricos únicos nem uma forma única de dominação. São múltiplas as faces da dominação e da opressão e muitas delas foram irresponsavelmente negligenciadas pela teoria crítica moderna" (Santos, 2000:27)

Se são múltiplas as faces da dominação, assim como múltiplas são as resistências e os seus protagonistas, fica impossível reunir a todos em uma grande teoria comum, de modo que
"mais do que uma teoria comum, do que necessitamos é de uma teoria de tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos actores colectivos 'conversarem' sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam" (Santos, 2000:27).

Esta "teoria de tradução" permitiria superar algumas das conseqüências da crise da teoria crítica moderna, especificamente a sua dificuldade em identificar os campos e as contradições entre eles e a dificuldade em superar a indeterminação ou indefinição do adversário, cuja opacidade aumenta à medida que descobre a multiplicidade das opressões, das resistências e dos agentes. A "teoria de tradução" seria o primeiro passo para superar o impasse da teoria crítica moderna rumo à construção de uma teoria pós-moderna.
Este é, enfim, o ponto de partida do livro:
"as promessas da modernidade, por não terem sido cumpridas, transformaram-se em problemas para os quais parece não haver solução. Entretanto, as condições que produziram a crise da teoria crítica moderna não se convertem ainda nas condições de superação da crise" (Santos, 2000:29).

Isso nos coloca numa posição de grande complexidade, que o autor resume na seguinte fórmula: "enfrentamos problemas modernos para os quais não há soluções modernas" (Santos, 2000:29). Para fazer frente a isso Boaventura de Sousa Santos identifica duas posições pós-modernas: uma "pós-modernidade reconfortante", segundo a qual, se não há soluções modernas é porque provavelmente não há problemas modernos e não houve promessas de modernidade. Para essa posição, há que "aceitar e celebrar o que existe" (Santos, 2000:29). Por outro lado, há também uma posição, que o autor diz ser a sua e que ele chama de "pós-modernidade inquietante ou de oposição", para a qual
"a disjunção entre a modernidade dos problemas e a pós-modernidade das possíveis soluções deve ser assumida plenamente e deve ser transformada num ponto de partida para enfrentar os desafios da construção de uma teoria crítica pós-moderna" (Santos, 2000:29)
Esta posição é desenvolvida ao longo desse volume de A crítica da razão indolente, que "visa definir uma abordagem pós-moderna de oposição, uma abordagem que articula a crítica da modernidade com a crítica da teoria crítica da modernidade" (Santos, 2000:37).
Para a teoria crítica pós-moderna de oposição "todo o conhecimento crítico tem de começar pela crítica do conhecimento" (Santos, 2000:29), construindo-se "a partir de uma tradição epistemológica marginalizada e desacreditada da modernidade o conhecimento-emancipação"1 (Santos, 2000:29-30). A opção das ciências sociais pelo conhecimento-emancipação, que é condição necessária para a construção de uma teoria crítica pós-moderna inquietante, tem três implicações, as quais são também desenvolvidas ao longo do livro:
a passagem do monoculturalismo para o multiculturalismo, com a incorporação dos silêncios e da diferença, desprezados pelo conhecimento-regulação. O conhecimento multicultural, incorporando o silêncio e a diferença exige uma teoria de tradução:
"o conhecimento-emancipação não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de suporte epistemológico as práticas emancipatórias, todas elas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis quando ligadas em rede" (Santos, 2000:31)

a passagem da peritagem heróica ao conhecimento edificante: enquanto a ciência moderna e a teoria crítica moderna partem do pressuposto de que o conhecimento é válido independentemente das condições que o tornam possível e de suas conseqüências técnicas, misturando as condições de objetividade e neutralidade, uma teoria crítica pós-moderna tem de partir da refundação de um dos fundamentos originais da teoria crítica moderna: a distinção entre neutralidade e objetividade. Assim, diz o autor,
"a teoria crítica pós-moderna parte do pressuposto de que o conhecimento é sempre contextualizado pelas condições que o tornam possível e de que ele só progride na medida em que transforma em sentido progressista essas condições. Por isso o conhecimento-emancipação conquista-se assumindo as conseqüências do seu impacto" (Santos, 2000:32).

a passagem da ação conformista à ação rebelde: para o autor, tanto a sociologia convencional quanto a teoria crítica moderna centraram-se na dicotomia estrutura/ação (ou determinismo/contingência) e sobre ela construíram seus quadros teóricos e analíticos, mas com o tempo esta dicotomia transformou-se em um debate sobre a ordem dentro de uma sociedade capitalista em que a escolha de alternativas é colocada dentro de limites tão estreitos que ações conformistas passam facilmente por ações rebeldes. Para Boaventura,
"é neste contexto que a teoria crítica pós-moderna procura reconstruir a idéia e a prática da transformação social emancipatória. As especificações das formas de socialização, de educação e de trabalho que promovem subjectividades rebeldes ou, ao contrário, subjectividades conformistas é a tarefa primordial da inquirição crítica pós-moderna" (Santos, 2000:33)

Nas páginas precedentes tentamos fazer uma apresentação bastante breve das principais idéias trabalhadas por Boaventura de Sousa Santos em seu livro A crítica da razão indolente. Certamente o leitor que iniciar a leitura do livro perceberá logo que esta resenha tocou apenas superficialmente nestas questões e que o livro é muito mais complexo e muito mais interessante do que pode-se depreender desta resenha. Conforme traz em seu próprio título, A crítica da razão indolente é um libelo contra a preguiça de pensar, um livro instigante e cuja leitura é fundamental para quem se sente desconfortável e indignado com a situação da sociedade contemporânea e não se conforma com o vazio de teorias que façam a crítica radical desse modo de viver e de pensar que caracteriza o capitalismo contemporâneo.



Referência:
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000.

É possível conhecer o conhecimento? - Resenha do livro O método 3. O conhecimento do conhecimento, de Edgar Morin

É possível conhecer o conhecimento? Do dilema de Pascal à complexidade: fundamentos antropológicos de um conhecimento sem fundamento.

Resenha do livro O método 3. O conhecimento do conhecimento, de Edgar Morin.



“Sendo todas as coisas causadas e causantes ... considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”
Pascal (citado em Morin, 1996: 201)


"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
Sem pedras o arco não existe."
Italo Calvino (1993: 79)




O que é o conhecimento? O que é a realidade? Como se conhece? É possível para a consciência acessar o mundo externo? Existe um mundo externo? Pode o conhecimento científico ter acesso ao real, àquilo que realmente existe? Existe aquilo que realmente existe? O que é o conhecimento científico? Pode o conhecimento conhecer o conhecimento? O que pode o ser humano conhecer? Estas são questões básicas da epistemologia contemporânea, cuja resposta torna-se a cada dia mais difícil. Em seu livro O método 3: o conhecimento do conhecimento (Morin, 1999), Edgar Morin apresenta uma antropologia do conhecimento que, ao abordar as condições bio-antropológicas das possibilidades do conhecimento, afirma que "o conhecimento do conhecimento requer um pensamento complexo, que requer necessariamente o conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 257), ou seja, "um pensamento ao mesmo tempo dialógico, reflexivo e hologramático" (Morin, 1999: 256), que, ao evitar as dicotomias do holismo/reducionismo, do construtivismo/realismo e do espiritualismo/materialismo, permita "deslocar e ultrapassar o problema dos fundamentos" (Morin, 1999: 256) do conhecimento.
Morin inicia seu livro – dividido em nove capítulos, mais uma introdução geral e uma conclusão – dizendo que os enormes progressos da ciência nos séculos XIX e XX levaram a progressos equivalentes de conhecimento, mas, por outro lado, colocaram em cena a questão do "inacessível ao conhecimento" (Morin, 1999: 16). Nesse movimento, diz Morin, nossa razão descobre em si uma zona cega que nos obriga a "questionar tudo o que nos parecia evidente e reconsiderar tudo o que fundava as nossas verdades" (Morin, 1999: 16), de maneira que "a busca da verdade está doravante ligada à investigação sobre a possibilidade da verdade" (Morin, 1999:16), o que implica a necessidade de conhecer o conhecimento.
Para Morin, o conhecimento é um fenômeno multidimensional, "simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social" (Morin, 1999:18), mas que foi "rachado", no interior de nossa cultura, pela própria organização do conhecimento, especialmente pela disjunção entre ciência e filosofia e pela fragmentação disciplinar da ciência, culminando com a crise da idéia de fundamento na filosofia, desde a crítica kantiana, passando pelo niilismo radical de Nietzsche até a problemática heideggeriana de um "fundamento sem fundo" (Morin, 1999: 21).
Por outro lado, a despeito da crise do fundamento na filosofia, a ciência, até o início do século XX continuava a proclamar que havia encontrado o fundamento empírico da verdade. Morin destaca, neste contexto, a tentativa do Círculo de Viena de transformar a filosofia em ciência através do "positivismo lógico", que pretendia fundamentar todas as suas proposições em enunciados verificáveis. Porém, diz ele, esta pretensiosa tentativa de depurar o conhecimento de todas suas impurezas e chegar aos fundamentos indubitáveis do conhecimento e do real acabou se confrontando com a descoberta da ausência de tais fundamentos:
"a crise dos fundamentos do conhecimento científico encontra a crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, ambas convergindo para a crise ontológica do Real (...). Nada de base de certeza, nada de verdade fundadora. A idéia de fundamento deve afundar com a idéia de última análise, de causa última, de explicação primeira" (Morin, 1999: 23).
A partir de agora, sublinha Morin, a dúvida e a relatividade não são mais passíveis de eliminação, sendo preciso, ao contrário, radicalizar a dúvida radical, num movimento de ruptura com o paradigma moderno, caracterizado pelo determinismo e pelo propósito de reduzir a realidade a descrições cada vez mais simples.
Momentos de ruptura paradigmática constituem uma crise geral de percepção, na qual os instrumentos que utilizamos para compreender a realidade já não servem para captar as informações necessárias e tornaram-se inadequados para descrever as turbulências de um mundo em processo permanente de transformação. A ruptura com o paradigma1 da modernidade não é, evidentemente, uma transição clara e tranqüila. Para muitos ela pode ser inaceitável ou mesmo invisível. Afinal, trata-se de romper com um sistema geral de crenças e expectativas - expressas ou não, implícitas e explícitas, conscientes e inconscientes - que até então eram aceitas como verdadeiras com relação ao mundo em que se vive; de romper com alguns dos elementos chave do pensamento ocidental e da ciência moderna e buscar uma forma de pensamento diferente, não determinista nem mecanicista, uma forma de pensamento que rompa com o paradigma da simplicidade e incorpore a complexidade e o indeterminismo no pensamento científico.
Morin propõe enfrentar o desafio da complexidade do conhecimento através de uma reforma do pensamento que supere a cisão entre ciência e filosofia que foi imposta pela razão moderna. Contra essa separação entre ciência e filosofia e o conseqüente fechamento em si tanto de uma como de outra, Morin advoga a necessidade de "estabelecer o difícil diálogo ente a reflexão subjetiva e o conhecimento objetivo" (Morin, 1999: 29) para que a ciência e a filosofia possam "mostrar-se a nós como duas faces diferentes e complementares do mesmo: o pensamento" (Morin, 1999: 30). Com isso seria possível alcançar um pensamento capaz de considerar o conhecimento: "um pensamento à altura da complexidade e do caráter multidimensional do problema" (Morin, 1999: 30).
Definindo o problema do conhecimento como um desafio, a partir da famosa frase de Pascal – “Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, não posso conhecer as partes se não conhecer o todo” -, Morin faz uma breve descrição do problema da complexidade e critica a característica reducionista da ciência moderna que, presa ao objetivo de oferecer descrições cada vez mais simples da realidade, tentou reduzir o conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem, pensando que se conhecêssemos as partes poderíamos conhecer o todo2.
Diante do fato de que não se pode mais ancorar o conhecimento em uma "filosofia primeira", que teria a chave para alcançar o "fundamento indubitável do real", e tendo em conta a noção de sistemas complexos, Morin destaca a importância de conhecer o conhecimento para alcançar a reforma do pensamento na direção de um pensamento complexo. Porém, diz ele, "se não há fundamento seguro para o conhecimento, não o há, evidentemente, para o conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 24)3.
Para poder ir adiante na tarefa de conhecer o conhecimento Morin propõe partir do aporte de conhecimento trazido tanto pelo teorema de Gödel quanto pela lógica de Tarski, que propõem, em resumo, que "nenhum sistema cognitivo estaria apto a conhecer-se exaustivamente nem a se validar completamente a partir de seus próprios instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 24). Isso não significa abrir mão de tentar algum conhecimento, mas sim a compreensão de que a incompletude e a convivência com pontos cegos é uma condição do conhecimento. Todavia, insiste Morin, tanto a lógica de Tarski quanto o teorema de Gödel indicam que é possível de algum modo "remediar a insuficiência autocognitiva de um sistema pela constituição de um metassistema capaz de envolvê-lo e de considerá-lo como sistema-objeto" (Morin, 1999: 24).
Com esta afirmação Morin permite pensar em "conhecimento de segundo grau", que poderia tomar como objeto de exame a lógica e os princípios que regem nosso conhecimento, gerando "um sistema de metapontos de vista sobre o conhecimento" (Morin, 1999: 25), cuja constituição está em curso desde a epistemologia genética de Piaget e que deve se completar, acredita Morin, com a plena constituição de uma "ciência da cognição", que fará do conhecimento um objeto de conhecimento ao incorporar a problemática da reflexividade (Morin, 1999: 25-6) e respeitar a problemática complexa própria ao conhecimento do conhecimento4.
Com isso torna-se ao mesmo tempo necessária e possível uma reorganização epistemológica, com a constituição de uma "epistemologia complexa" cuja competência será muito maior do que a da epistemologia clássica:
"estará aberta para certo número de problemas cognitivos essenciais levantados pelas epistemologias bachelardiana (complexidade) e piagetiana (a biologia do conhecimento, a articulação entre lógica e psicologia, o sujeito epistêmico). Propor-se-á a analisar não somente os instrumento do conhecimento, mas também as condições de produção (neurocerebrais, socioculturais) dos instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 31).
Assim como Copérnico mostrou que a Terra não era o centro do universo, Hubble mostrou que o universo não tem centro. A reforma do pensamento concretizada pela epistemologia complexa proposta por Morin pode ser vista como uma revolução hubbleana, já que a epistemologia complexa é uma epistemologia sem fundamento (conforme a sugestão de N. Rescher, assumida por Morin), "um sistema em rede cuja estrutura não é hierárquica, sem que nenhum nível seja mais fundamental do que os outros" (Morin, 1999: 32). A isso Morin incorpora o que ele chama de recursividade rotativa, a qual permitiria tentar uma rearticulação/reorganização do saber na qual a "epistemologia não é o centro da verdade, gira em torno do problema da verdade passando de perspectiva em perspectiva e, tomara, de verdades parciais em verdades parciais ..." (Morin, 1999: 32).
Considerada esta epistemologia sem fundamento e, portanto, a inexistência de um centro da verdade, perdemos as ilusões positivistas e superamos o desvario cientificista do positivismo lógico, mas continuamos precisando enfrentar a questão de um conhecimento desprovido de fundamentos e, portanto, a existência inarredável de pontos cegos e de impotência cognitiva. Ou seja, é preciso continuar fazendo a interrogação radical sobre as possibilidades do conhecimento e do conhecimento do conhecimento: "é impossível fundar e acabar, não somente o conhecimento, mas também o conhecimento do conhecimento, o conhecimento do conhecimento do conhecimento, e assim ao infinito ..." (Morin, 1999: 33).
De toda maneira, diz Morin, é preciso tentar escapar da alternativa entre ceticismo e perspectivismo, "entre a ignorância e o obscurantismo" (Morin, 1999: 33). Afinal,
"na crise dos fundamentos e diante do desafio da complexidade do real, todo conhecimento hoje necessita refletir sobre si mesmo, reconhecer-se, situar-se, problematizar-se (...): não há conhecimento sem conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 34, itálico no original).

Mais ainda, diz Morin, não há vida sem conhecimento: "o ser vivo só pode sobreviver num meio com e através do conhecimento desse meio. A vida não é viável nem passível de ser vivida sem conhecimento" (Morin, 1999: 224, itálico no original). No caso específico do conhecimento humano, caracterizado como conhecimento espiritual - que só pode emergir numa cultura e que é inconcebível sem o cérebro – Morin afirma tratar-se do "conhecimento de um indivíduo ao mesmo tempo produto e produtor de um processo auto(geno-feno-ego)-eco-re-organizador" (Morin, 1999: 224), conhecimento ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, que organiza em representações as informações recebidas e os dados disponíveis e que só é possível na cultura, pois, como afirma Morin "o mundo está no espírito que está no mundo (...) a cultura está no espírito que está na cultura" (Morin, 1999: 258). Por isso, Morin afirma que
"a humanidade do conhecimento aparece-nos não somente como a união indissolúvel da animalidade e da humanidade do conhecimento, mas também como a união indissolúvel da humanidade e da culturalidade do conhecimento" (Morin, 1999: 259).

Livro complexo que propõe a formulação de um pensamento complexo para dar conta do conhecimento do conhecimento, O método 3 afirma-se como leitura indispensável para enfrentar o desafio da complexidade do real na sua multidimensionalidade, com todas as suas ligações, interações, implicações mútuas e paradoxos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1-CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
2-MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.
3-___________ . "Da necessidade de um pensamento complexo". In: MARTINS, Francisco Menezes e SILVA, Juremir Machado da (orgs.) Para navegar no século 21: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs, 1999b, p. 19-42

Sociedade permissiva e a educação dos filhos: consumismo, narcisismo e irresponsabilidade

Sociedade permissiva e a educação dos filhos: consumismo, narcisismo e irresponsabilidade *

O que está acontecendo com nossas crianças? Esta é a pergunta que pais, professores e meios de comunicação têm feito cada vez mais insistentemente. Talvez a pergunta mais adequada fosse O que esta acontecendo com nossas famílias?. De qualquer modo para responder às perguntas anteriores preciso fazer uma outra pergunta, mais ampla: O que está acontecendo com o mundo?
Então, o que está acontecendo com o mundo? Nos últimos 40 ou 50 anos vêm ocorrendo transformações políticas, econômicas, tecnológicas, científicas, demográficas e culturais que afetam países, empresas, classes sociais, famílias. Transformações que afetam nosso cotidiano, provocam mudanças de valores, mudanças no modo de vida, mudanças na educação e conduzem à formação de uma sociedade tecnizada, individualista, consumista, permissiva, narcísica.
Algumas dessas mudanças podem ser percebidas em aspectos como o mundo do trabalho, (com a crescente indistinção entre tempo de trabalho / tempo de lazer, a escassez de empregos e as exigências de maior qualificação), a percepção do tempo ( tempo parece passar mais rápido, todos reclamam que não têm tempo), a violência (banalização da violência, sensação permanente de insegurança, medo dos espaços públicos e a proliferação de grades, cercas eletrônicas, vigias, armas), na televisão (aumento do tempo de transmissão, aumento do número de canais, guerras de audiência, vulgarização da programação, divulgação e fortalecimento de preconceitos e estereótipos, embaralhamento das faixas de idade da programação), na publicidade, na educação etc.
Em uma primeira definição esquemática dessa sociedade em que estamos vivendo e precisando educar nossos filhos podemos dizer que se trata de uma sociedade laxista, baseada em uma cultura do consumo narcísico e uma educação permissiva:
sociedade laxista / sociedade de consumo
capitalismo avançado (ou tardio)
racionalização e burocratização de todas dimensões da vida
conversão dos indivíduos em consumidores
degradação da autoridade familiar

educação permissiva

inculcação dos hábitos que formam o perfil psicológico do futuro consumidor
a criança aprende a ver toda autoridade, toda tradição e toda renúncia à satisfação imediata dos desejos como sinal de autoritarismo e repressão
criação de personalidades narcísicas, vítimas de ansiedade e insatisfação crônicas (que são os motores da voracidade consumista)

cultura do consumo narcísico
(ou cultura do narcisismo consumista)
liberdade narcísica de consumir
obediência à lei do mercado: hipnotizada pelo consumo, a 'massa' de sujeitos só se deixa mobilizar pelo que reverte de imediato em bem-estar físico, mental ou sexual
fuga alucinada de toda e qualquer responsabilidade pelo que se faz
busca do prazer imediato, sem esforço e sem conseqüências

Em resumo, temos um modo de vida em que o consumismo, a banalidade, a vulgaridade e a irresponsabilidade conduzem a um processo de perda de referencial, perplexidade, insatisfação e ansiedade que levam à culpabilização do outro e à busca por receitas prontas, manuais diversos, livros de auto-ajuda, especialistas e técnicos em qualquer coisa. Ou seja, a abrir mão de pensar com a própria cabeça.
Este processo de modificação profunda do modo de vida na sociedade contemporânea, muito bem definida por Bauman como sociedade líquida, vem pelo menos desde os anos 70 do século XX e afetou fortemente a geração de pessoas que nasceram entre o fim dos anos 50 e o início dos anos 60 do século passado (a minha geração) e continua a afetar a geração de adultos jovens estão hoje na faixa dos trinta anos. E claro, também os filhos destas gerações, pessoas que estão hoje na faixa dos 20 aos 30 anos que mesmo já sendo pais de filhos pequenos, continuam sendo filhos e adolescentes em função de uma educação típica da sociedade permissiva (a sociedade que criou a adolescência tardia).
Estas gerações, como todas as outras, viveram os conflitos da contradição entre os valores da educação de seus pais e os valores que começaram a se afirmar no mundo quando atingiram a adolescência e a juventude. Mas no caso de quem atingiu a adolescência a partir dos anos 80 e 90 do século passado, as velocidade das transformações acelerou e não deu tempo para que novos valores e convicções de afirmassem para substituir os padrões antigos, considerados defasados, obsoletos, caretas, dinossáuricos.
Oscilando entre o excesso de rigor de nossos pais e o excesso de liberalidade da assim chamada “geração hippie”, muitos de nós fomos pedir ajuda para "especialistas", fossem eles educadores, autores de manuais de educação ou de livros de auto-ajuda. Assim, ficamos oscilando entre modismos, oportunismos, boas-intenções e picaretagens.
Nesta busca, nos mortificamos por bater nos nossos filhos, nos mortificamos por não bater nos nossos filhos, nos mortificamos por não fazer todas as vontades dos nosso filhos, nos mortificamos por fazer todas as vontades dos nossos filhos, nos mortificamos por "não saber ser pais". E pusemos a culpa nos nossos pais, pusemos a culpa na televisão, pusemos a culpa nos comunistas, pusemos a culpa nos padres, pusemos a culpa nos militares, pusemos a culpa nos hippies, pusemos a culpa nos amigos dos nossos filhos, pusemos a culpa nos pais dos amigos dos nossos filhos, pusemos a culpa nos professores dos nossos filhos, pusemos a culpa na escola.
Corremos atrás de todas as modas, de todas as receitas, de todas as novidades psicológicas e pedagógicas. E esquecemos de pensar sobre o que acreditamos, esquecemos de pensar sobre quais são os nosso valores, esquecemos de pensar sobre o mundo que queremos para os nossos filhos, esquecemos de pensar sobre nossas responsabilidades. Esquecemos de pensar.
E, quase todo o tempo, dissemos uma coisa e fizemos outra: queríamos filhos "bem educados" e nunca dizíamos "por favor", "obrigado", "desculpe"; queríamos filhos obedientes, mas quebrávamos as regras que nós mesmos havíamos imposto; queríamos filhos tranqüilos e gritávamos, brincávamos de briga, etc; queríamos que nossos filhos se abrissem conosco, mas não nos abríamos com eles; queríamos ter diálogo com nossos filhos, mas nunca na hora da novela, na hora do jornal, na hora do futebol, no hora da conversa com a vizinha, etc; queríamos filhos com autonomia e responsabilidade, mas nunca negociamos regras nem deixamos claro do que gostamos e do que não gostamos.
E, quase o tempo todo, ensinamos o princípio da corrupção fizemos chantagem emocional.
E hoje continuamos assim: queremos que nossos filhos sejam honestos, mas não obedecemos as leis de trânsito e não nos importamos de furar a fila ou de "dar um jeitinho", sempre que possível; queremos que nossos filhos não usem drogas, mas não abrimos mão do nosso cigarro, da nossa cerveja, do nosso uísque, dos nossos tranqüilizantes, dos nosso outros tantos comprimidos; queremos que nossos filhos sejam saudáveis mas os empanturramos com salgadinhos, batatas fritas, hambúrgueres e refrigerantes; queremos que nossos filhos sejam austeros e comedidos, mas não abrimos mão da nossa comilança de fim de semana, da nossa gritaria familiar, etc; queremos que nossos filhos sejam econômicos, mas não resistimos a uma boa liquidação; queremos que nossos filhos não sejam fúteis, mas os inscrevemos em concursos de miss, rainha mirim, princesinha disso e daquilo, gato e gata, semanas fashion e coisas do gênero; queremos que nosso filhos cultivem o espírito e tenham sentimentos nobres, mas não abrimos mão da revista de fofocas e dos programas de baixaria na TV; queremos liberdade, mas não aceitamos a responsabilidade.
E quando nosso filhos não correspondem aos nossos sonhos e desejos dizemos que a culpa é deles, das companhias, da escola, do mundo de hoje em dia.
E nós? Ah!, nós sabemos o certo e o errado; nós podemos fazer qualquer coisa, por que é só dessa vez, é só por curiosidade, é só para saber como é; nós só bebemos socialmente, nós só fumamos por uma opção adulta; nós não somos dependentes, nós podemos parar quando quisermos. Porque, enfim, nós somos os reis da cocada preta.
Espero que o que eu disse até agora tenha incomodado. Espero, mais ainda, que cada um possa, honestamente, fazer um balanço de suas próprias atitudes e dizer que esta carapuça não serve. Vejam se me entendem: estou fazendo algumas generalizações. Na verdade, não sou contra o churrasco de domingo, nem contra a macarronada da nonna. O que eu quero é que a gente pense sobre isso, que perceba o sentido das coisas, que não faça só por fazer, só porque todo mundo faz. O que eu quero é que deixemos de fazer as coisas mecanicamente, que evitemos nos deixar embrutecer pela rotina. Não tenho receitas. Penso que não existem receitas. O que é preciso é pensar, refletir. Acho que é possível investir na busca de respostas a estas indagações. Mas isso exige um investimento. Investimento de tempo, dinheiro e interesse, não necessariamente nessa ordem. Investimento, enfim, no aprendizado de como educar os filhos na convivência cotidiana com eles.
Vejam bem, não adianta colocar os filhos em uma escola legal, escolhida a dedo, se a gente, no fundo, não confia na escola e sempre acha que "o meu rapazinho" ou "a minha princesinha" têm de ter tratamento especial. Mas também não adianta colocar os filhos em uma escola legal, escolhida a dedo, na qual a gente confia, se em casa as coisas funcionam como foi descrito antes.
E também não adianta colocar os filhos numa escola legal, comprar bons livros e bons discos, assistir programas culturais e cultivar papos cabeça se a gente não viver isso tudo honestamente, com sinceridade, humildade e simplicidade. E, claro, com responsabilidade.
Afinal, quais são nossos valores? Em que acreditamos? Que mundo queremos para nós? Que mundo queremos para nosso filhos? Em quem votamos para deputado e vereador?
Que livros temos na estante? Temos livros na estante? Lemos os livres que temos na estante? Que música ouvimos? Que conversas animam nossas rodas de amigos?
Como cada um de nós responderiam a estas perguntas: A que velocidade eu dirijo? Eu estaciono em local proibido? Eu paro na faixa de segurança? Eu respeito o pedestre? Eu falo ao celular enquanto dirijo? Eu desligo o celular no cinema? E na sala de aula, eu desligo o celular? Eu ouço os outros quando converso? Eu sei ouvir? E falar, eu sei falar para ser ouvido?
Como eu trato os animais de rua? E as pessoas de rua, adultos e crianças? E os desconhecidos, garçons, vendedores, atendentes, transeuntes, como os trato?
Afinal, quais são os meus valores? Em que eu acredito? Qual a coerência entre minha fala e minha prática? Qual a coerência entre o que eu digo e o que eu penso? E entre o que eu penso e o que eu faço?
É bom pensar com carinho e cuidado nisso tudo, porque, como já dizia Guimarães Rosa, viver é muito perigoso. Afinal, ninguém nunca viveu tempos totalmente favoráveis, em que fosse fácil ser homem (ou mulher) e levar uma vida boa. Como escreveu Jorge Luis Borges no início de um de seus contos: "Couberam a ele, como a todos os homens, maus tempos para viver." Também nós vivemos em tempos difíceis e por isso, como disse Fernando Savater em seu livro Ética para meu filho,
"A única coisa que posso garantir é que nunca se viveu no paraíso e que a decisão de viver bem cada um deve tomar a respeito de si mesmo, dia após dia, sem esperar que as estatísticas lhe sejam favoráveis ou que o resto do universo lhe peça por favor" (SP: Martins Fontes, 2000, p. 111).
E com isso volto à questão da responsabilidade – que é o fundamento de uma ética que pode superar o consumismo e o narcisismo – para concluir citando, mais uma vez, o filósofo espanhol:
"Responsabilidade é saber que cada um de meus atos vai me construindo, vai me definindo, vai me inventando. Ao escolher o que quero fazer vou me transformando pouco a pouco. Todas as decisões deixam marca em mim mesmo antes de deixá-la no mundo que me cerca." (SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 111).


*Palestra realizada na Escola de Educação Infantil Escolinha de Arte, em Santa Cruz do Sul, no dia 27 de abril de 2005.



Referências bibliográficas
COSTA, Jurandir Freire. "O ocaso da família". In A ética e o espelho da cultura. RJ: Rocco, 1994, p. 156
LASCH, Cristopher. O mínimo eu.
________________ . A cultura do narcisismo.
________________ . Refúgio num mundo sem coração.
SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

domingo, 16 de agosto de 2009

Sociedade em rede e modo de desenvolvimento informacional: descrições sociológicas da sociedade contemporânea sob o capitalismo avançado*

Existe um considerável conjunto de descrições e análises das estruturas sociais emergentes na passagem do século vinte para o vinte e um que destacam o fato de as sociedades contemporâneas estarem sendo palco de extraordinárias transformações econômicas, políticas, culturais, sociais e tecnológicas. Nas últimas décadas do século vinte foram vários os autores que, sob diferentes perspectivas, estudaram esta transformação radical do modo de produção do social e identificaram nela uma ruptura com os padrões da sociedade industrial.
A tecnização, informatização e globalização da sociedade colocam o conhecimento em posição privilegiada como fonte de valor e de poder(1) e provocam profundas alterações na organização do trabalho, com a passagem do modelo taylorista-fordista para o modelo da especialização flexível(2). No modelo taylorista, característico da sociedade industrial, a organização do trabalho baseava-se numa rígida repartição das tarefas, numa nítida hierarquia de funções e numa forte divisão entre planejamento e execução (trabalho intelectual e trabalho manual). Já o paradigma informacional, característica central das sociedades baseadas no conhecimento, exige (e possibilita) uma nova organização do trabalho - com a integração sistêmica de diversas unidades, práticas gerenciais interativas, equipes responsáveis por um ciclo produtivo completo e capazes de tomar decisões, produção e utilização intensiva de informações, ênfase na capacidade de mudar rapidamente de funções (flexibilidade) - e uma profunda reorganização do processo educativo, das relações sociais entre gêneros e idades, e dos sistemas de valores(3).
Chamada de sociedade pós-industrial(4), sociedade informática(5), sociedade do conhecimento(6), sociedade tecnizada(7) ou sociedade em rede (8), a nova forma social que estes autores vislumbram sob estas transformações é a de uma sociedade globalizada, altamente tecnizada, com a ênfase da produção econômica recaindo sobre o setor de serviços e com utilização intensiva do conhecimento através das inovações tecnológicas oferecidas pela microeletrônica, pela informática e pelas novas tecnologias de comunicação. A seguir passo a apresentar as descrições das transformações da sociedade contemporânea feitas por 4 autores cuja leitura me parece imperiosa para quem quer entender a revolução que estamos atravessando (ou que nos atravessa) nestas últimas décadas do velho século e primeiras décadas de um novo milênio.
Adam Schaff publicou A sociedade informática" em 1985 apresentando-o como um livro de "futurologia sócio-política" no qual procura responder à pergunta "que futuro nos aguarda?" no que se refere às dimensões sociais do desenvolvimento, dando conta de uma visão de futuro para vinte ou trinta anos. Para Schaff, as três últimas décadas do século vinte, mostram as sociedades humanas em meio a uma acelerada e dinâmica revolução da microeletrônica na qual as possibilidades de desenvolvimento são enormes, como são também enormes os perigos inerentes a elas, não só nos aspectos tecnológicos mas também nas relações sociais, uma vez que as transformações da ciência e da técnica, com as conseqüentes transformações na produção e nos serviços deverão conduzir a transformações também nas relações sociais.
No seu entendimento a 2ª Revolução Industrial, em curso no final do século vinte, está conduzindo a uma ampliação das capacidades intelectuais do ser humano bem como à sua substituição por autômatos, aspirando a eliminação total do trabalho humano numa sociedade informática. Os três aspectos desta revolução tecnico-científica são, segundo Schaff, a microeletrônica, à qual está associada a revolução tecnológico-industrial; a microbiologia e a engenharia genética; e a revolução energética, com a procura por novas fontes de energia. Duas ordens de questões conduzem a investigação de Schaff: por um lado, as questões relacionadas com o sentido da vida, os sistemas de valores e estilos de vida, perguntando se a sociedade informática dará o passo para a materialização do ideal dos humanistas: o homem universal, cidadão do mundo com formação global e cultura internacional. Por outro, as questões da política e das relações de poder, perguntando qual será a repercussão da atual revolução industrial, com os avanços da informática, sobre o papel e as funções do Estado (centralização X descentralização; governo local X autogoverno). Aqui a questão central parece ser: quem deverá gerir este processo informático generalizado?
Mesmo que se possa concordar que mudanças na formação cultural das sociedade informatizadas poderão materializar o ideal de um cidadão universal bem informado e com formação global e que a informática pode abrir espaço para o exercício de formas de democracia direta em governos locais, é importante ter presente, alerta Adam Schaff, que a atual revolução tecnológica de modo algum nos conduz automaticamente a uma forma superior de democracia. Ao contrário, diz Schaff, se não houver a ação política dos partidos populares e das entidades organizativas dos trabalhadores, um desenvolvimento possível para a sociedade informática é a divisão social entre quem tem e quem não tem acesso à tecnologia (a atualmente chamada exclusão digital).
Já Alvin Toffler, com uma visão bastante otimista sobre o potencial e as virtudes da tecnologia, descreve em Powershift, de 1990, a ascensão de um novo sistema de meios de comunicação, inseparável de um novo sistema de criação de riqueza. Para Toffler, “numa economia baseada no conhecimento, o problema político interno mais importante não é mais a distribuição (ou redistribuição) da riqueza, mas da informação e dos meios de informação que produzem riqueza”(Toffler, 1990:389). Segundo o autor, já é possível reconhecer profundas tensões sociais provocadas pela introdução desta nova forma de economia, em especial a “divisão da população em inforrica e infopobre” (Toffler, 1990:384), sendo que as possibilidades de superação dos “problemas relacionados com a maneira pela qual o conhecimento é disseminado na sociedade” (Toffler, 1990:387) passam especialmente pela articulação do sistema educacional com o sistema de meios de comunicação e pelo completo desenvolvimento dos princípios da interatividade, mobilidade, conversabilidade, conectividade, ubiqüidade e globalização, considerados por ele como os princípios definidores do sistema de meios de comunicação do futuro.
Numa perspectiva mais próxima da de Castells, inclusive compartilhando o mesmo tipo de preocupação metodológica, Lucília Machado examina com rigor as transformações tecnológicas e gerenciais/organizacionais do final do século passado, ainda que com as limitações decorrentes da dimensão de um artigo. Segundo Machado(9), estamos observando a emergência de um novo padrão internacional de competitividade capitalista, caracterizado pela redefinição do modelo de indústria, a expansão do terciário e alterações na estrutura de empregos, nas relações trabalhistas, na estrutura ocupacional e nas definições de trabalho qualificado e trabalho desqualificado, tudo isso resultando em uma mudança substancial no padrão de exploração da classe trabalhadora em escala mundial(10).
Conforme Machado, o atual padrão de exploração da força de trabalho - resultante das modificações na base técnica provocadas pela introdução da microeletrônica e da informática - baseia-se no trabalho flexível e integrado. Tornado possível pela versatilidade dos equipamentos, passíveis de reprogramação via software o trabalho flexível e integrado implica na habilidade para o desempenho de várias funções simultâneas e conexas e na intercambialidade dentro do coletivo de trabalho e apresenta novas exigências aos trabalhadores, como a capacidade de seleção, tratamento e interpretação de informações, comunicação e integração grupal, a antevisão de problemas, a capacidade de resolução de imprevistos, a atenção e a responsabilidade, além das variáveis de tipo comportamental como abertura, criatividade, motivação, iniciativa, curiosidade e vontade de aprender e de buscar soluções.
As mudanças na organização do trabalho e a introdução de novas tecnologias de gestão e de produção exigem um novo estilo de trabalhador, que necessita de habilidades gerais de abstração, comunicação e integração. Estas habilidades são próprias de serem aprendidas na escola durante a instrução regular, e esta é a raiz do recente interesse das classes dominantes pela qualidade escolar, ao contrário do período anterior ao esgotamento do padrão taylorista-fordista, no qual a educação desempenhava um papel periférico, pois o trabalhador não precisava de grandes conhecimentos técnicos ou de habilidades especiais, sendo preparado na própria linha de produção através do treinamento.
Manuel Castells apresenta em A sociedade em rede uma importante contribuição para o debate sobre a morfologia social das sociedades de tecnologia avançada neste início de novo século. Fundamentando-se em amplo conjunto de informações empíricas e numa refinada teoria sociológica, Castells descreve a sociedade contemporânea como uma sociedade globalizada, centrada no uso e aplicação de informação e conhecimento, cuja base material está sendo alterada aceleradamente por uma revolução tecnológica concentrada na tecnologia da informação e em meio a profundas mudanças nas relações sociais, nos sistemas políticos e nos sistemas de valores.
Para examinar a complexidade da "nova economia, sociedade e cultura em formação" (Castells, 1999:24) Castells utiliza como ponto de partida a revolução da tecnologia da informação, por sua "penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana" (p. 24), e alerta que "devemos localizar este processo de transformação tecnológica revolucionária no contexto social em que ele ocorre e pelo qual está sendo moldado" (Castells, 1999: 24), como é de praxe na boa sociologia praticada pelos clássicos.
A contribuição de Castells à discussão apresenta quatro aspectos principais: a centralidade da tecnologia da informação; o refinamento da teoria sociológica, com a proposição da articulação do conceito clássico de modo de produção à noção, por ele desenvolvida, de modo de desenvolvimento; a compreensão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e tecnológico, deixando de lado a visão reducionista e ideologizada das perspectivas liberais do Estado mínimo; e a caracterização da sociedade informacional como uma sociedade em rede, com a morfologia social definida por uma topologia em forma de rede. Vale a pena dedicarmos alguns parágrafos a cada um dos tópicos apontados.
Sobre a sua compreensão do papel do Estado é suficiente citar uma frase contida na conclusão de uma erudita e esclarecedora digressão sobre o papel do Estado para o desenvolvimento industrial da Europa após o século 16 e para a não industrialização da China na mesma época. Ao comparar os dois processos Castells destaca que
"o que deve ser guardado para o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma época determinados" (Castells, 1999: 31).

Ao observar que a tecnologia da informação foi essencial para o processo de reestruturação do sistema capitalista a partir dos anos oitenta, Castells mostra que o desenvolvimento tecnológico foi moldado pela lógica e pelos interesses do capitalismo avançado, ainda que não tenha se restringido à expressão desses interesses, mesmo porque também o estatismo (Castells entende que há dois sistemas de organização social presentes em nosso período histórico: o capitalismo e o estatismo) tentou redefinir os meios de alcançar seus objetivos estruturais por meio da tecnologia da informação. O importante a reter aqui é a existência de uma inter-relação empírica entre modos de produção (capitalismo, estatismo) e modos de desenvolvimento (industrialismo, informacionalismo), a qual não acaba, porém, com a distinção analítica entre os conceitos. A abordagem de Castells assume uma perspectiva teórica clássica da sociologia, postulando "que as sociedades são organizadas em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção, experiência e poder" (Castells, 1999: 33). A produção é organizada em relações de classe que estabelecem a divisão e o uso do produto em termos de investimento e consumo. A experiência se estrutura pelas relações entre os sexos (até agora organizada em torno da família)e o poder tem como base o Estado e o monopólio do uso da violência.
É neste quadro teórico que Castells situa a nova estrutura social, que "está associada ao surgimento de um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo. É muito interessante a discussão teórica iniciada aqui sobre as diferenças entre sociedade da informação e sociedade informacional (Castells adota esta última, por analogia ao significado de sociedade industrial), mas não tenho espaço para apresentá-la. Restrinjo-me a indicar aqui a noção de modo de desenvolvimento: "procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria para gerar o produto, em última análise, determinando o nível e a qualidade do excedente" (Castells, 1999:34). Cada modo de desenvolvimento é definido pelo elemento que promove a produtividade. Assim, o que define o modo informacional de desenvolvimento é a "ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade"(Castells, 1999: 35), o que, segundo o autor, nos conduz a um novo paradigma tecnológico, baseado na tecnologia da informação.
A essa altura Castells apresenta como característica importante da sociedade informacional, ainda que não esgote todo o seu significado, "a lógica de sua estrutura básica em redes, o que explica o uso do conceito de 'sociedade em rede'" (Castells, 1999: 46, nota 33). O surgimento da sociedade em rede torna-se possível com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação que, no processo, "agruparam-se em torno de redes de empresas, organizações e instituições para formar um novo paradigma sociotécnico" (Castells, 1999: 77) cujos aspectos centrais, representam a base material da sociedade da informação. Assim como Toffler(12) apresenta as seis caraterísticas do novo sistema de meios de comunicação que, na sua análise, suportam e dão origem a um novo sistema de produção e distribuição de riqueza e de poder, Castells nos mostra os cinco aspectos centrais do novo paradigma: a informação é matéria-prima; as novas tecnologias penetram em todas as atividades humanas; a lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações usando essas novas tecnologias; a flexibilidade de organização e reorganização de processos, organizações e instituições; e, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado, conduzindo a uma interdependência entre biologia e microeletrônica (Castells, 1999: 78-9).
Para finalizar é preciso ainda apresentar, mesmo que rapidamente, o conceito de rede trabalhado por Castells. O conceito de rede parte de uma definição bastante simples - "rede é um conjunto de nós interconectados" (p. 498)- mas que por sua maleabilidade e flexibilidade oferece uma ferramenta de grande utilidade para dar conta da complexidade da configuração das sociedades contemporâneas sob o paradigma informacional. Assim, diz Castells, definindo ao mesmo tempo o conceito e as estruturas sociais empíricas que podem ser analisadas por ele,
"redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio" (Castells, 1999: 499)

Esta definição dá ao autor uma ferramenta poderosa para suas análises e observações e lhe permite apresentar alguma conclusões provisórias sobre os processos e funções dominantes na era da informação, indicando que "a nova economia está organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação" (Castells, 1999: 499) e que "os processos de transformação social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede ultrapassam a esfera das relações sociais e técnicas de produção: afetam a cultura e o poder de forma profunda" (Castells, 1999: 504).


Notas
1. TOFFLER, Alvin. Powershift. RJ: Record, 1990
2. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.
3. SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1995
4. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
5. SCHAFF, Adam. Op. cit.
6. TOFFLER, Alvin. Op. cit.
7. MACHADO, Lucília. Op. cit.
8. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
9. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37
10. Para Machado, op. cit., a concorrência intercapitalista em torno da acumulação de tecnologia exige contínuos ajustamentos da base técnica da produção às determinações das necessidades de valorização do capital: a competitividade requer contínuo aumento da produtividade pelo aumento do controle e da racionalização do trabalho e pela redução dos custos de cada unidade produzida. Contudo, diz a autora, a posterior (e cada vez mais rápida) generalização da inovação tecnológica conduz à perda relativa da rentabilidade, que pode provocar uma nova era de crise de acumulação em virtude do esgotamento da base técnica em uso. Na busca de uma mais-valia relativa extraordinária, completa Machado, a concorrência intercapitalista força a obsolescência do padrão tecnológico vigente e patrocina novas inovações tecnológicas, as quais exigem o aumento da composição orgânica do capital, ou seja, maior investimento em capital constante em detrimento do capital variável, o que, em última instância, significa aumento do desemprego
11. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
12. Op. cit.



Referências bibliográficas
1. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
2. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
3. SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1995
4. TOFFLER, Alvin. Powershift. Rio de Janeiro: Record, 1990
5. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.


* Texto de trabalho, escrito como roteiro para aulas da disciplina de sociologia no curso de ciências sociais da Unisc.
** Caco Baptista é sociólogo, mestre em Ciências Sociais, com especialização em Antropologia Social e em Administração Universitária. Doutorando em sociologia no PPGS-UFRGS. Professor do departamento de Ciências Humanas da UNISC. caco@unisc.br

terça-feira, 24 de março de 2009

Universidade e inovação tecnológica na sociedade informacional *

Neste texto pretendo discutir, numa abordagem sociológica, alguns aspectos da relação entre a universidade e a inovação tecnológica no contexto das transformações históricas em curso na sociedade contemporânea, as quais irei caracterizar como uma revolução tecnológico-informacional que dá origem a um novo paradigma sócio-técnico que está na base da constituição de uma nova forma social, a sociedade em rede.
A abordagem sociológica da inovação tecnológica precisa ser uma abordagem ampla, que dê conta tanto dos seus aspectos propriamente científicos e tecnológicos como dos aspectos sociais e econômicos, tal como foi tratada a questão no Seminário de Sociologia da Inovação ministrado no segundo semestre de 2004 pelo professor Renato de Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de
"estimular a reflexão sobre o fenômeno da Inovação em Ciência e Tecnologia desde uma perspectiva sociológica, ressaltando a possibilidade de esta permitir uma abordagem ampla que, levando em conta a complexidade do fenômeno e integrando suas dinâmicas econômica, histórica e sócio-culturais, contribui para evitar reducionismos tecnicistas" (Oliveira, 2004:1),

o referido seminário buscou integrar as abordagens clássicas de Karl Marx1 e Max Weber2 com a também clássica teoria econômica de J. Schumpeter3 e a análise filosófica empreendida por Hannah Arendt4, como pré-condição para o estudo da inovação no capitalismo contemporâneo5 e a posterior análise dos novos significados da tecnologia na economia do conhecimento e na sociedade em rede6.
No espírito do que foi tratado no Seminário, o que se espera como resultado desta discussão é poder avançar algumas possibilidades de resposta para a questão de como fomentar inovações em ambientes sociais concretos, ou seja, como gerar uma capacidade de inovação tecnológica e social num país, numa região ou numa comunidade. Para isso é preciso começar perguntando o que é inovação.

Inovação econômica no capitalismo
Como ponto de partida assumo o pressuposto geral do Seminário supra-referido, de que a inovação é um fenômeno da modernidade ocidental, mais especificamente do capitalismo, que precisa ser tratado no âmbito de uma teoria da ação e que depende da existência de um sujeito que inova. Esse pressuposto nos conduz à compreensão de que a inovação é um fenômeno que vai contra a tradição e que para se impor precisa superar os arranjos costumeiros que garantem a estabilidade de qualquer sistema social, ou seja, a inovação não depende da demanda, mas da ação de empreendedores dotados de inventividade.
Esta perspectiva já está colocada na análise de Max Weber e é bastante detalhada por Giovanni Arrighi em sua retomada da noção schumpeteriana do "fluxo circular da vida econômica" para entender as ondas longas de "depressão" e "prosperidade" do capitalismo. Para Max Weber, cuja preocupação central de não é com o capitalismo mas com a modernização e racionalização do mundo, a inovação é uma necessidade da economia capitalista, pois sem ela esta não supera seus limites naturais. Weber entende a ciência e a técnica como componentes essenciais de um processo de racionalização que estrutura um modo de pensamento dentro do qual os sujeitos adquirem a capacidade de agir em relação a fins, isto é, adquirem uma racionalidade. Para ele o capitalismo é um fenômeno resultante de um processo de racionalização do mundo que se restringe ao Ocidente, e a economia capitalista só pode ser compreendida no contexto da produção de uma racionalidade que passa pelo terreno da ética e da constituição do indivíduo como um sujeito autônomo, capaz de pensar e agir em conseqüência do que pensa. Ao colocar a inovação dentro da âmbito de uma teoria da ação7 que concebe o indivíduo como um sujeito autônomo, Weber coloca a liberdade como um problema central para a sociologia da inovação ao perguntar em que condições certos indivíduos são capazes de realizar a inovação, isto é, de romper com a tradição na atividade econômica.
Giovanni Arrighi tem como ponto de partida de sua análise do capitalismo contemporâneo o modelo de Schumpeter8, mas critica o fato de a teoria do fluxo circular de riquezas conduzir à compreensão da economia como uma atividade estática e fechada em si mesma, dando demasiada ênfase à tendência de gerar ordens costumeiras, ou seja, "regras e normas de interação que minimizam as chances de grandes interrupções no fluxo circular da vida econômica" (Arrighi, 1997:21). Para Arrighi a especificidade do capitalismo é a intermediação de empresas capitalistas no fornecimento de insumos e produtos, as quais estão voltadas continuamente para a geração de lucro através do estabelecimento, alongamento, aprofundamento e reestruturação de cadeias de mercadorias, isto é, de "novas combinações insumo-produto" (Arrighi, 1997: 21-2), matriz das inovações econômicas. Arrighi procura aperfeiçoar o modelo de Schumpeter descrevendo a economia como um sistema em equilíbrio constituído por três subsistemas interdependentes - o sistema de Estado, o sistema interempresas e o sistema de domicílios - cada um deles voltado para um tipo específico de produção e com um tipo específico de demanda e que mantém relações complexas entre si: o Estado produz proteção para empresas e domicílios, as empresas produzem meios de proteção para o Estado e meios de subsistência para os domicílios e estes produzem trabalhadores para o Estado e para as empresas. O Estado tem por objetivo a acumulação de poder, as empresas buscam a acumulação de capital e os domicílios buscam segurança e estabilidade. Como os Estados não existem isolados, gera-se um sistema interestados. As empresas, por sua vez, num sistema mundial, relacionam-se com o seu Estado mas também com outros Estados, de modo que temos uma competição entre empresas (o sistema interempresas), competição entre Estados (o sistema interestados) e competição entre o sistema de empresas e os Estados. Entendendo os domicílios como o espaço do hábito e do costume, Arrighi apresenta a empresa como o espaço onde se dá a inovação. Contudo, embora a inovação surja na empresa, é preciso o apoio do Estado, tornando necessária uma aliança entre empresas e Estados9.
O que propicia que a inovação surja no sistema interempresas é a lógica própria desse sistema: a acumulação para melhorar a posição relativa no sistema. Ou seja, para subsistir as empresas precisam acumular, mas o que lhes interessa não é o seu volume bruto de acumulação e sim a sua posição relativa frente a outras empresas. Para melhorar sua posição relativa as empresas entram em luta competitiva e isso gera um fator de desequilíbrio no sistema: a inovação (Arrighi, 1997: 21-2)10, que será definida por Arrighi como "a introdução de novos métodos de produção, novas mercadorias, novas fontes de suprimento, novas rotas de comércio e mercados e novas formas de organização" (Arrighi, 1997:148).
Penso que o modo como Arrighi coloca a questão da inovação econômica no capitalismo é bastante profícuo para a análise da concorrência intercapitalista, tanto ao nível da competição entre empresas como entre países, mas entendo que para dar conta da compreensão da transformação histórica que estamos vivendo e de seus desdobramentos na organização da atividade produtiva11 e na cultura12, é preciso enfatizar o caráter tecnológico e informacional da "nova economia" e abordar a inovação tecnológica.


Inovação tecnológica na sociedade em rede
As três últimas décadas do século XX foram palco de uma das mais extraordinárias mudanças históricas já vistas pela humanidade, comparável, em sua magnitude, ao conjunto de transformações econômicas, políticas, culturais, sociais e tecnológicas que caracterizaram o surgimento do mundo moderno. A globalização, tecnização e informatização da sociedade contemporânea têm provocado profundas alterações na organização da atividade produtiva, com a passagem do modelo taylorista-fordista13, para o modelo da especialização flexível14.
Estas transformações, que continuam em curso neste início de século, têm sido objeto da atenção de diversos autores que, sob diferentes perspectivas, concordam que as novas opções tecnológicas e organizacionais utilizadas para superar o esgotamento da base técnica em uso não incidem apenas sobre o processo de trabalho, mas são mudanças societais15 que caracterizam uma ruptura com os padrões da sociedade industrial. Chamada de sociedade pós-industrial (Lyotard, s.d.), sociedade informática (Schaff, 1995), sociedade tecnizada (Machado, 1993) ou sociedade em rede (Castells, 1999), a nova forma social que se vislumbra sob estas transformações é a de uma sociedade globalizada e altamente tecnizada, na qual a produção econômica se vale de uma utilização intensiva do conhecimento através das inovações tecnológicas oferecidas pela microeletrônica, pela informática, pela biotecnologia e pelas novas tecnologias de comunicação.
Este novo padrão de concorrência intercapitalista em torno da acumulação de tecnologia exige contínuos ajustamentos da base técnica da produção às determinações das necessidades de valorização do capital. A competitividade requer contínuo aumento da produtividade pelo aumento do controle e da racionalização do trabalho e pela redução dos custos de cada unidade produzida. Para tanto, busca-se diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado a cada mercadoria através de inovações tecnológicas e organizacionais com vistas à elevação dos lucros. Contudo, a posterior (e cada vez mais rápida) generalização da inovação tecnológica pode provocar uma nova era de crise de acumulação e a conseqüente perda relativa da rentabilidade. Nessa lógica, para garantir a lucratividade e a capacidade de acumulação de cada empresa, a concorrência intercapitalista força a obsolescência do padrão tecnológico vigente e patrocina novas inovações tecnológicas e assim sucessivamente.
Nessa nova forma social que vem sendo gestada nas três ou quatro últimas décadas, quando o conhecimento passou a assumir posição privilegiada como fonte de poder e de riqueza, e a produtividade e a competitividade a depender predominantemente da capacidade de gerar e aplicar produtivamente o conhecimento na produção de inovações tecnológicas, é possível falar, como Castells, que estamos vivendo em uma "nova economia", a qual "se desarrolla de forma desigual y de forma contradictoria, pero que se desarrolla en todas las áreas del mundo" (Castells, 2000: 1). Conforme Castells, esta nova economia pode ser caracterizada por três grandes aspectos interrelacionados:
"es una economia que esta centrada en el conocimiento y en la información como bases de producción de la productividad y bases de la competitividad, tanto para empresas como para regiones, ciudades y países" (Castells, 2000: 1)
"es una economia global. Global no quiere decir que todo esté globalizado, sino que las actividades económicas dominantes están articuladas globalmente y funcionam cómo una unidad en tiempo real" (Castells, 2000: 2)
"es una economia que funciona en redes, en redes descentralizadas dentro de la empresa, en redes entre empresas y en redes entre las empresas y sus redes de pequeñas y medias empresas subsidiárias" (Castells, 2000: 2)
Castells enfatiza que esta "nova economia" tem uma base tecnológica, constituída por tecnologias de informação e comunicação de base microeletrônica, e uma forma central de organização, que ele entende ser a internet: "internet no es una tecnologia, internet es una forma de organización de la actividad"(Castells, 2000: 3). Dessa forma Castells apresenta a internet como equivalente à fábrica na era industrial: "lo que era la fabrica en la gran organización en la era industrial, es internet en la Era de la Información" (Castells, 2000: 3). Com base nesta concepção Castells irá desenvolver a noção de "sociedad red", uma sociedade cuja estrutura social é construída a partir de redes de informação com base na tecnologia de informação microeletrônica da internet. Ou seja, a internet
"constituye la base material y tecnológica de la sociedade red, es la infraestructura tecnológica y el medio organizativo que permite el desarrollo de una serie de nuevas formas de relación social que no tienen su origen en internet, que son fruto de una serie de cambios históricos pero que no podrían desarrollarse sin internet. (...) Internet es el corazón de un nuevo paradigma sociotécnico que constituye en realidad la base material de nuestras vidas y de nuestras formas de relación, de trabajo y de comunicación. Lo que hace internet es procesar la virtualidad y transformarla en nuestra realidad, constituyendo la sociedad red, que es la sociedad en que vivimos" (Castells, 1998: 12).

Estas idéias são aprofundadas por Castells em A sociedade em rede (Castells, 1999), o primeiro volume de sua monumental trilogia A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Neste livro, cuja elaboração durou doze anos, o autor fundamenta-se em amplo conjunto de informações empíricas e procura dar conta da descrição e análise das estruturas sociais emergentes no final do século vinte.
A contribuição de Castells à nossa discussão apresenta quatro aspectos principais: a centralidade da tecnologia da informação; o refinamento da teoria sociológica, com a proposição da articulação do conceito clássico de modo de produção à noção, por ele desenvolvida, de modo de desenvolvimento; a compreensão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e tecnológico, deixando de lado a visão reducionista e ideologizada das perspectivas liberais do Estado mínimo; e a caracterização da sociedade informacional como uma sociedade em rede.
Sobre o papel do Estado penso que é suficiente citar uma frase contida na conclusão de uma erudita e esclarecedora digressão sobre a importância do Estado para o desenvolvimento industrial da Europa após o século 16 e para a não industrialização da China na mesma época. Ao comparar os dois processos Castells destaca que
"o que deve ser guardado para o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma época determinados" (Castells, 1999: 31).

Ao observar que a tecnologia da informação foi essencial para o processo de reestruturação do sistema capitalista a partir dos anos 1980, Castells mostra que o desenvolvimento tecnológico foi moldado pela lógica e pelos interesses do capitalismo avançado, ainda que não tenha se restringido à expressão desses interesses, mesmo porque também o estatismo16 tentou redefinir os meios de alcançar seus objetivos estruturais por meio da tecnologia da informação. O importante a reter aqui é a existência de uma inter-relação empírica entre modos de produção (capitalismo, estatismo) e modos de desenvolvimento (industrialismo, informacionalismo), a qual, contudo, não dissolve a distinção analítica entre os dois conceitos. A abordagem de Castells assume uma perspectiva teórica clássica da sociologia, postulando "que as sociedades são organizadas em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção, experiência e poder" (Castells, 1999: 33). A produção é organizada em relações de classe que estabelecem a divisão e o uso do produto em termos de investimento e consumo. A experiência se estrutura pelas relações entre os sexos (até agora organizada em torno da família) e o poder tem como base o Estado e o monopólio do uso da violência.
É neste quadro teórico que Castells situa a nova estrutura social, que "está associada ao surgimento de um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo. É muito interessante a discussão teórica iniciada aqui sobre as diferenças entre sociedade da informação e sociedade informacional (Castells adota esta última, por analogia ao significado de sociedade industrial), mas não tenho espaço para apresentá-la, restringindo-me a indicar o que é a noção de modo de desenvolvimento: "procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria para gerar o produto, em última análise, determinando o nível e a qualidade do excedente" (Castells, 1999:34). Cada modo de desenvolvimento é definido pelo elemento que promove a produtividade. Assim, o que define o modo informacional de desenvolvimento é a "ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade"(Castells, 1999:35), o que, segundo o autor, nos conduz a um novo paradigma tecnológico, baseado na tecnologia da informação.
A essa altura Castells apresenta como característica importante da sociedade informacional, ainda que não esgote todo o seu significado, "a lógica de sua estrutura básica em redes, o que explica o uso do conceito de 'sociedade em rede'" (Castells, 1999:46, nota 33). O surgimento da sociedade em rede torna-se possível com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação que, no processo, "agruparam-se em torno de redes de empresas, organizações e instituições para formar um novo paradigma sociotécnico" (Castells, 1999:77), cujos aspectos centrais representam a base material da sociedade da informação.
Castells destaca cinco aspectos centrais do novo paradigma: a informação é matéria-prima; as novas tecnologias penetram em todas as atividades humanas; a lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações usando essas novas tecnologias; a flexibilidade de organização e reorganização de processos, organizações e instituições; e, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado, conduzindo a uma interdependência entre biologia e microeletrônica (Castells, 1999: 78-9).
Para finalizar este brevíssimo resumo das idéias desenvolvidas por Castells, entendo que é preciso apresentar o seu conceito de rede, que parte de uma definição inicialmente muito simples - "rede é um conjunto de nós interconectados" (Castells, 1999: 498) - e vai evoluindo em complexidade até nos oferecer uma ferramenta de grande utilidade para dar conta da complexidade da configuração das sociedades contemporâneas sob o paradigma informacional. Assim, diz Castells, definindo ao mesmo tempo o conceito e as estruturas sociais empíricas que podem ser analisadas por ele,
"redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio" (Castells, 1999: 499)

Esta definição dá ao autor uma ferramenta poderosa para suas análises e observações e lhe permite apresentar alguma conclusões provisórias sobre os processos e funções dominantes na era da informação, indicando que "a nova economia está organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação" (1999: 499) e que "os processos de transformação social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede ultrapassam a esfera das relações sociais e técnicas de produção: afetam a cultura e o poder de forma profunda" (1999: 504).


A Universidade e a inovação tecnológica na sociedade em rede
As mudanças na organização do trabalho, a introdução de novas tecnologias de gestão e de produção, a centralidade das tecnologias de informação e comunicação e a ubiqüidade da internet na sociedade contemporânea exigem um novo tipo de trabalhadores altamente qualificados, dotados de conhecimento e de informação e de habilidades gerais de abstração, comunicação e cooperação, que sejam capazes de produzir, disseminar e operar as inovações tecnológicas que sustentam esta nova economia e esta nova sociedade. Como destaca Manuel Castells, "son innovadores capaces de tener ideas y aplicarlas, los que constituyen, realmente, la materia prima de esta nueva economia" (2000:6).
Se queremos, como foi dito na página inicial deste trabalho, gerar uma capacidade de inovação tecnológica e social num país, numa região ou numa comunidade, precisamos de pessoas com conhecimento e idéias, que tenham curiosidade intelectual e que saibam pesquisar, filtrar, selecionar e utilizar com criatividade as informações disponíveis nas inúmeras bases de dados e meios de informação existentes na internet. Estas pessoas, como diz ironicamente Castells, "no se generan por razones genéticas, ¿cierto?" (Castells, 2000: 6) e, portanto é necessário produzi-las. Para isso é fundamental a educação. Mas educação, o sabemos, não se resume ter boas escolas (aliás, o que é uma boa escola?). Trata-se é de desenvolver um sistema educativo capaz de formar pessoas com autonomia intelectual e agilidade de pensamento, que sejam capazes de auto-programação e de aquisição de conhecimentos pelo resto da vida.
Isto inclui desde a pré-escola até a universidade, claro – e a universidade tem papel central e preponderante na constituição desse sistema, como será referido a seguir – mas é preciso ir além. A formação de capacidade de inovação numa região passa pelo conceito de cidade educativa17, definida por Castells como "el conjunto de del sistema de relaciones sociales locales que produce un sistema de información interactiva, que desarrolla la capacidad educativa en un sentido amplio y no simplesmente de adquisición de conocimientos" (Castells, 2000: 6).
Tanto nesse processo de desenvolvimento da "cidade educativa", como no sentido mais amplo de construção de uma capacidade de inovação tecnológica em contextos sociais concretos, destaca-se o papel da universidade. Castells, para quem a capacidade em inovação tecnológica e empresarial na nova sociedade em rede precisa de meios de inovação concentrados territorialmente, destaca a cidade como um desses meios de inovação, que funcionam como centros de atração dos dois elementos chave dos sistemas de inovação tecnológica: "la capacidad de innovación, es decir, talento, personas com conocimiento y ideas, y (...) capital, sobretodo capital riesgo, que es el capital que permite la innovación" (Castells, 2000: 5). E, completa Castells, a relação entre cidade e universidade é fundamental na nova economia. Não apenas porque as universidades são fatores de crescimento econômico, tecnológico e empresarial, mas porque "son un factor de creación de ciudad (...) un elemento esencial de la producción de mano de obra cualificada, de innovadores y de personas com ideas nuevas" (Castells, 2000: 7). Afinal, a "nova economia" depende de gente que aprende a pensar ou a enfocar as coisas de novas maneiras, e isso depende fundamentalmente da qualidade do sistema de educação universitária.
E aqui encontramos talvez o nó górdio da indução de capacidade local de inovação tecnológica. Isso porque, ainda com Castells, embora a universidade "debe ser y debiera ser el centro de innovación fundamental, puesto que es lo que está en la vanguardia del pensamiento y, de manera autónoma y independiente, debiera plantear los problemas que (...) la sociedad no puede plantear" (Castells, 1998:1), o que encontramos mais freqüentemente nas universidades frente ao risco da inovação são reações conservadoras, defesa de privilégios corporativos e uma imensa preocupação com a comodidade pessoal que se manifestam na adesão cega e irracional a rotinas burocráticas.
As necessidades crescentes de construção de capacidade de inovação colocadas pelo contexto político, econômico, social e tecnológico da sociedade em rede descrita nas páginas anteriores têm desafiado as universidades para que se incorporem às novas formas de pensar, fazer e pesquisar da era da informação e para que ofereçam maior flexibilidade e melhor qualidade na oferta de serviços educacionais, garantindo um acesso mais amplo a uma educação superior de maior qualidade através do uso das novas tecnologias da informação e comunicação. Mais ainda, este esforço não deve ser restrito à área acadêmica, com a introdução de novas metodologias e tecnologias educacionais, mas deve se estender também à área administrativa, com a adoção de novas técnicas e metodologias de gestão. Em todas as áreas de atuação da universidade as novas tecnologias da informação e da comunicação podem transformar a maneira como as tarefas são realizadas, desvelando toda uma série de novos relacionamentos e alianças, e podem mesmo chegar a revolucionar o modo de operação e a estrutura da universidade.
Conforme foi visto, vivemos hoje na era da informação e na sociedade rede, uma forma social na qual o conhecimento é hiper-acelerado (dependendo do campo de conhecimento o estoque de saber muda em poucos meses), de modo que os diplomas iniciais são obsoletos em pouquíssimo tempo e temos de aprender a aprender permanentemente. Ao mesmo tempo, os problemas são crescentemente pluridisciplinares e os campos do saber são explodidos e se interpenetram cada vez mais, de modo que as disciplinas acadêmicas estão ultrapassadas e o conhecimento universitário é utilizado não mais em profissões mas em "funções de trabalho". Estima-se que exista algo em torno de 12 a 18 mil funções de trabalho, de forma que uma carreira profissional permite atuar em centenas de funções de trabalho. Como as grandes universidades oferecem não mais do que 100 cursos/carreiras, um dos grandes dramas da universidade é formar para 12 a 18 mil funções de trabalho com não mais de 100 carreiras, o que explica as dificuldades da universidade para cumprir com as exigências do mercado de trabalho. Por outro lado, mesmo perplexa e desorientada frente à realidade da sociedade do conhecimento, a universidade permanece como um dos pilares mais sólidos e mais necessários da sociedade contemporânea, ainda que seja evidente sua necessidade de transformar-se para satisfazer melhor às necessidades do seu entorno social.
Neste quadro, não se justifica mais, por exemplo, a separação disciplinar do conhecimento e a estruturação da universidade numa estrutura hierárquica tipo árvore – em que a universidade é construída pela criação de faculdades que, por sua vez se dividem em departamentos que de dividem em matérias que se dividem em disciplinas. A capacidade de adaptação às mudanças referidas acima exige a superação da fragmentação das unidades através da criação de unidades mais amplas que promovam as interações entre todos os elementos constituintes da universidade. Estas interações devem ser buscadas e estimuladas de diversas formas, desempenhando papel importante neste tópico as redes eletrônicas, mas sem descuidar da construção de ambientes de comunicação que permitam interações as mais diversas, inclusive locais e interpessoais.
Isto posto, é preciso ter claro que também no Brasil as transformações societais que afetaram o mundo nestas últimas décadas chegaram causando um forte impacto na dinâmica econômica e na organização da sociedade, bem como no âmbito da educação superior, onde podem ser identificados, ao lado do reconhecimento da importância da educação superior como fator crítico para a competitividade do país numa economia mundial centrada no valor econômico do conhecimento e de uma crescente expansão, diversificação e segmentação da demanda por educação superior em todas as suas modalidades, o acirramento e a desterritorialização da concorrência entre as universidades e exigências crescentes por maior qualidade, flexibilidade e dinamismo na oferta de seus serviços.
Assim, para a construção de capacidade de inovação em contextos sociais concretos – e considerando, como foi dito anteriormente, que a inovação tecnológica ocorre na empresa mas depende da interação entre empresa e universidade e da atuação do Estado, seja na formatação de políticas de inovação, seja no financiamento da pesquisa tecnológica – é necessário tanto capacitar a universidade brasileira a gerar conhecimento voltado para a inovação tecnológica e a formar pessoas capazes de trabalhar nos centros de P&D empresariais, quanto estimular o setor empresarial a investir em P&D, a abrir seus laboratórios para estágios remunerados e a buscar financiamento para o desenvolvimento de projetos conjuntos com as universidades.
Para intensificar o diálogo entre universidade e empresas, um instrumento importante seria a constituição de conselhos consultivos nas universidades com a participação efetiva de representantes de empresas inovadoras ou de suas entidades representativas. Estes conselhos teriam, entre outras, as funções de assessorar a administração dos cursos, manter os currículos atualizados, assegurar o funcionamento de um sistema de estágios e ajudar a colocar os profissionais no mercado, além de funcionarem como "antenas" para a criação de cursos que atendam às necessidades das novas funções de trabalho demandadas pela sociedade.
Outro mecanismo para a priorização da geração de conhecimento voltado à inovação tecnológica e facilitar a relação entre universidade e empresas seria a criação de algum tipo de interface (entidade, fundação, etc.) para fazer a "ponte" do conhecimento científico com a aplicação industrial inovadora, além da inclusão, na missão da universidade (ou na sua carta de objetivos prioritários) a explicitação formal da necessidade da ligação com as empresas inovadoras e da ênfase no desenvolvimento da inovação tecnológica.
Por fim, nesta listagem certamente inicial e incompleta, seria fundamental tocar na questão dos fundos públicos para a indução da inovação, instituindo-se mecanismos de contrapartida que garantam que o aumento do investimento público na pesquisa científica e tecnológica conduza ao aumento dos investimentos da iniciativa privada.
E como as universidades não existem soltas no espaço, mas sim fortemente ancoradas numa região, é preciso que haja um estímulo às universidades regionais, entendidas estas como universidades que definam-se em função do seu entorno, que estabeleçam o que querem ser sempre considerando as necessidades do desenvolvimento regional.
É preciso ter claro que a universidade precisa reencontrar seu sentido nesse novo mundo complexo, turbulento e interligado por redes as mais diversas. Num mundo convertido numa grande rede de comunicações e suporte à informação (Castells, 1999) a universidade não pode mais se fechar dentro de si mesma, precisando, ao contrário, articular-se com as demais entidades e instituições em todo o planeta, compartilhando pessoas e recursos. Ao mesmo tempo, compreendendo que nesta grande rede de comunicações coexistem sistemas complexos que interagem fortemente procurando adaptar-se a um ambiente que se modifica na medida mesma em que os sistemas interagem entre si e com o ambiente, a universidade também precisa perceber-se como um sistema complexo que precisa modificar-se continuamente para adaptar-se às alterações do ambiente em que existe.
Ao lado da pertinência e da relevância social das suas atividades - maior qualidade e diversidade de serviços educacionais, maior capacidade de resposta às demandas da sociedade, maior relevância da produção intelectual e da pesquisa, ampliação do acesso à graduação, ênfase nas relações internacionais e interinstitucionais (UNESCO, 1999) - as universidades precisarão também se preocupar com a competitividade - maior eficiência e eficácia dos processos, estruturas mais flexíveis, decisões mais ágeis e melhor informadas, gestão mais profissional - e com a ampliação e aperfeiçoamento da interatividade com a comunidade – tanto a comunidade acadêmica internacional como a comunidade local/ regional e o setor empresarial.
Existindo num ambiente turbulento e em constante movimento, a universidade precisa perceber que seu objeto específico de atuação, o conhecimento, modifica-se num ritmo cada vez mais rápido de inovações científicas e tecnológicas, o que tem conseqüências diretas e impactantes para a universidade, que precisa tomar decisões cruciais sobre seus modos de organização e funcionamento, sempre tendo em mente que sua competência específica, aquilo que justifica a sua existência e para o que foi criada, é a capacidade de criar, difundir e aplicar conhecimento, formulando novas questões e gerando novas idéias, que sejam comprometidas com a transformação do presente e a construção do futuro.







Referências bibliográficas

ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la nueva economia. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2000. Disponível na Internet em http://www.fbg.ub.es e em http://www.lafactoriaweb.com/articulos/castells12.htm (acessado em 30/03/2003).
_______________. Internet y la sociedad red. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya, 1998. Disponível na Internet em http://campus.uoc.es/web/cat/index.html e em http://iigov.org/documentos/ (acessado em 21/01/2003).
_______________. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LIPIETZ, Alain. Audácia. Uma proposta para o século XXI. São Paulo: Nobel, 1991.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, s.d.
MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". São Paulo, Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.
SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: UNESP/Brasiliense, 1995.
SCHWARTZ, Gilson. "Guimarães Rosa na Cidade Tiradentes: anotações sobre a Cidade do Conhecimento". São Paulo, São Paulo em Perspectiva, 16(4), 36-40, 2002.
UNESCO. Tendências da educação superior para o século XXI. Brasília: UNESCO/CRUB, 1999.

* Trabalho apresentado no Seminário de Sociologia da Inovação, ministrado pelo professor doutor Renato de Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (Doutorado) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS no segundo semestre de 2004.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cinema e realidade. Quantos mundos existem num olhar?

Estas notas têm origem nas emoções e pensamentos que me foram despertadas pelo documentário francês Ser e ter, um filme de grande beleza que faz um retrato muito sensível do cotidiano de uma escola multi-seriada no interior da França no final do século XX.
Este filme (exibido pela Associação dos Amigos do Cinema em 2005) ganhou premios de melhor montagem e teve indicações para o prêmio de melhor direção em diversos festivais na Europa e nos permite muitos níveis de discussão. Por exemplo, se quisermos discuti-lo como obra cinematográfica, poderíamos refletir sobre a opção de enquadramento, a posição da câmera, os planos, os cortes. Ou, se quisermos debater sua temática ou seu objeto, aquilo que ele mostra, poderíamos nos deter na discussão do sistema educacional, da classe unidocente ou multisseriada, da relação professor-aluno. Podemos nos deter nos alunos: quem são estas crianças, por que estão nessa escola, o que pensam, o que desejam. Podemos ainda usar o filme para pensar a nossa realidade brasileira: os professores das nossas escolas, as nossas escolas, as nossas crianças.
Mas como o filme se destaca pela direção e pela montagem, penso que este é um bom tema para pensar. Direção, montagem, edição. Que realidade é mostrada através desses mecanismos? Por definição, um documentário não é ficção. Ou seja, um documentário documenta a realidade. Mas que realidade ele documenta? E com que fidelidade é mostrada essa realidade?
Indo além, podemos perguntar quanta direção, montagem e edição existem não só num documentário mas nos telejornais, novelas e filmes de ficção? E nos livros didáticos? E nos editoriais? E nas falas dos palestrantes? E nas políticas governamentais? Então, que mundo é esse que nos é mostrado? Que realidade é essa a que temos acesso?
Paulo Freire, o grande mestre da nossa educação dizia que "nós vivemos no mundo e com o mundo" e com isso queria alertar para a necessidade de refletirmos sobre o mundo para poder mudá-lo no sentido da emancipação. Pois então, que mundo é esse que é o nosso mundo, o mundo em que vivemos?
Conforme a já clássica afirmação do sociólogo alemão Niklas Luhmann, “o que sabemos sobre o mundo, o sabemos através dos meios de comunicação para as massas”. Ou seja, os meios de comunicação (o cinema entre eles) servem, entre outras coisas, para trazer o mundo até nós. Mas que mundo é esse? Podemos confiar na realidade do mundo que os meios de massas nos apresentam? Para Luhmann, “sabemos tanto graças aos meios de comunicação de massas, que não podemos confiar em tal fonte”.
E então? O que é o mundo? O que é a realidade? Podemos alcançar a verdade? Podemos confiar no que vemos e ouvimos? Podemos acreditar no que nos contam e mostram?
Vamos começar de novo: vivemos no mundo e com o mundo. Mas que mundo é esse? Ora, é o mundo que conhecemos, o mundo que construímos ao conhecer e que é, ao mesmo tempo, o nosso entorno, o mundo com que nos acoplamos, que é trazido até nós, até o universo do nosso conhecimento, até o âmbito da nossa percepção. Como assim? Simples: não podemos estar em todos os lugares nem podemos ver todos os acontecimentos (não somos deuses, concordam?). Então, alguém precisa nos contar as coisas, nos relatar estes acontecimentos, nos reportar o que acontece nos mais diversos lugares. Os meios de comunicação, o cinema entre eles, fazem isso muito bem. Mas que acontecimentos eles nos trazem, que mundo eles nos mostram, que verdade eles nos contam? Qual é a realidade que vemos através das lentes dos meios de comunicação?
O mundo que nos é trazido, que conhecemos e a partir do qual refletimos, aprendemos, formamos opiniões, é um mundo que nos chega editado. Ou seja, o mundo que chega até nós passa por dezenas, centenas, talvez milhares de filtros. Ele percorre um trajeto no qual é redesenhado, reorganizado, remontado através desta diversidade de filtros.
Esses filtros – o rádio, a TV, o jornal, o cinema, nossos vizinhos e amigos, todos aqueles que nos contam coisas, que nos relatam acontecimentos, eventos, fatos – fazem o que? Esses filtros, que selecionam o que vamos ouvir, ver ou ler, fazem a montagem do mundo que conhecemos. Ou seja, o mundo é editado e é assim que ele chega a todos nós.
Esta edição – que nos mostra o mundo que conhecemos, o mundo a que temos acesso – obedece a interesses variados: econômicos, políticos, religiosos, estéticos, de valores, etc.
Vamos deixar bem claro: editar é construir uma realidade a partir de supressões ou acréscimos em um acontecimento. Ou, em muitos casos, apenas pelo destaque de uma parte em detrimento de outra. Ao editarmos a realidade, aumentamos um ponto, diminuímos outro, iluminamos aqui, escurecemos ali. Editar é reconfigurar alguma coisa, dando-lhe um novo significado, atendendo a determinado interesse, buscando um determinado objetivo, fazendo valer um determinado ponto de vista, assumindo uma determinada perspectiva.
Nesta perspectiva, segundo o ponto de vista que estou assumindo aqui, um documentário, assim como uma notícia ou uma reportagem, têm um aspecto de ficção, isto é, de construção e reconstrução da realidade.
No caso do cinema, que foi o nosso ponto de partida, a imagem que chega a nós como espectadores é a imagem tomada pela câmera e tem o ponto de vista de um autor, seja ele o roteirista, o diretor ou o produtor.
Quer dizer, um documentário é uma visão da realidade mas não é a realidade, não é toda a realidade, não é a realidade em todos os seus aspectos e em toda a sua complexidade. E não poderia ser diferente disso. Não somos deuses e não podemos ter acesso a todas as diferentes facetas da realidade. Pelo menos, não ao mesmo tempo.
Assim, é fundamental, para termos condições de conhecer melhor o mundo, que possamos desvendar os mecanismos usados em sua edição. Que mundo é esse que nos é mostrado? O que foi amplificado? O que não foi mostrado ou foi reduzido? Que interesses e que objetivos levaram a destacar este ponto de vista?
No caso dos meios de comunicação, entre eles o cinema, somos todos alunos. Eles são a fonte primeira que educa a todos os educadores: pais, professores, autores, etc. Por isso precisamos procurar entendê-los bem e saber ler criticamente o que eles nos mostram. Só assim poderemos trabalhar adequadamente estes meios em nossas atividades educacionais de modo a conseguirmos percorrer o caminho que vai do mundo que nos entregam pronto, editado, até a construção de um mundo em que todos possam desenvolver plenamente o seu potencial criativo e a sua capacidade de invenção (quer chamemos a isso de tornar-se sujeito, exercer a cidadania ou dar sentido à existência).
As possibilidades de reflexão e debate são múltiplas. Se ficarmos pensando em tudo que poderíamos discutir não começaremos nunca. É preciso tomar uma decisão, fazer uma escolha, mesmo sabendo que ao fazer determinada escolha estamos deixando de lado inúmeras outras possibilidades. Quantos mundos existem num olhar? Qunatos mundos cabem numa tela de cinema? Quantos outros mundos nos são sonegados pela mesmice do circuito comercial de cinema e de televisão?
Estas perguntas todas ao longo do texto apontam para a importância de um trabalho de reflexão sobre a educação e os meios de comunicação e provocam outras tantas indagações: que mundo estamos mostrando a nossas crianças? Nossas escolas e nossos professores e professoras facilitam (e estimulam) o acesso de seus alunos à diversidade de produção cultural existente no mundo? Que acesso tem nossos estudantes à multiplicidade de visões de mundo disponíveis no campo das artes e da cultura?
Neste contexto cabe destacar a importância de um trabalho como o que vem sendo realizado em nossa cidade já há seis anos pela Associação dos Amigos do Cinema, seja em suas sessões semanais das sextas-feiras – nas quais temos a oportunidade de assistir a produções de países como China, Irã, Índia, Taiwan, Argentina, Brasil e tantos outros – seja no seu projeto “A escola vai ao cinema”, que dá às escolas participantes a oportunidade de apresentar seus alunos a filmes que não passam nas salas comerciais nou na televisão e que não se encontram nas prateleiras das locadoras. Procure saber mais. Acesse o blogue http://amigosdocinema.blogspot.com e veja como funciona um dos mais tradicionais cineclubes do Rio Grande do Sul.

Caco Baptista é sociólogo, professor da Unisc e
presidente da Associação dos Amigos do Cinema de Santa Cruz do Sul.