domingo, 16 de agosto de 2009

Sociedade em rede e modo de desenvolvimento informacional: descrições sociológicas da sociedade contemporânea sob o capitalismo avançado*

Existe um considerável conjunto de descrições e análises das estruturas sociais emergentes na passagem do século vinte para o vinte e um que destacam o fato de as sociedades contemporâneas estarem sendo palco de extraordinárias transformações econômicas, políticas, culturais, sociais e tecnológicas. Nas últimas décadas do século vinte foram vários os autores que, sob diferentes perspectivas, estudaram esta transformação radical do modo de produção do social e identificaram nela uma ruptura com os padrões da sociedade industrial.
A tecnização, informatização e globalização da sociedade colocam o conhecimento em posição privilegiada como fonte de valor e de poder(1) e provocam profundas alterações na organização do trabalho, com a passagem do modelo taylorista-fordista para o modelo da especialização flexível(2). No modelo taylorista, característico da sociedade industrial, a organização do trabalho baseava-se numa rígida repartição das tarefas, numa nítida hierarquia de funções e numa forte divisão entre planejamento e execução (trabalho intelectual e trabalho manual). Já o paradigma informacional, característica central das sociedades baseadas no conhecimento, exige (e possibilita) uma nova organização do trabalho - com a integração sistêmica de diversas unidades, práticas gerenciais interativas, equipes responsáveis por um ciclo produtivo completo e capazes de tomar decisões, produção e utilização intensiva de informações, ênfase na capacidade de mudar rapidamente de funções (flexibilidade) - e uma profunda reorganização do processo educativo, das relações sociais entre gêneros e idades, e dos sistemas de valores(3).
Chamada de sociedade pós-industrial(4), sociedade informática(5), sociedade do conhecimento(6), sociedade tecnizada(7) ou sociedade em rede (8), a nova forma social que estes autores vislumbram sob estas transformações é a de uma sociedade globalizada, altamente tecnizada, com a ênfase da produção econômica recaindo sobre o setor de serviços e com utilização intensiva do conhecimento através das inovações tecnológicas oferecidas pela microeletrônica, pela informática e pelas novas tecnologias de comunicação. A seguir passo a apresentar as descrições das transformações da sociedade contemporânea feitas por 4 autores cuja leitura me parece imperiosa para quem quer entender a revolução que estamos atravessando (ou que nos atravessa) nestas últimas décadas do velho século e primeiras décadas de um novo milênio.
Adam Schaff publicou A sociedade informática" em 1985 apresentando-o como um livro de "futurologia sócio-política" no qual procura responder à pergunta "que futuro nos aguarda?" no que se refere às dimensões sociais do desenvolvimento, dando conta de uma visão de futuro para vinte ou trinta anos. Para Schaff, as três últimas décadas do século vinte, mostram as sociedades humanas em meio a uma acelerada e dinâmica revolução da microeletrônica na qual as possibilidades de desenvolvimento são enormes, como são também enormes os perigos inerentes a elas, não só nos aspectos tecnológicos mas também nas relações sociais, uma vez que as transformações da ciência e da técnica, com as conseqüentes transformações na produção e nos serviços deverão conduzir a transformações também nas relações sociais.
No seu entendimento a 2ª Revolução Industrial, em curso no final do século vinte, está conduzindo a uma ampliação das capacidades intelectuais do ser humano bem como à sua substituição por autômatos, aspirando a eliminação total do trabalho humano numa sociedade informática. Os três aspectos desta revolução tecnico-científica são, segundo Schaff, a microeletrônica, à qual está associada a revolução tecnológico-industrial; a microbiologia e a engenharia genética; e a revolução energética, com a procura por novas fontes de energia. Duas ordens de questões conduzem a investigação de Schaff: por um lado, as questões relacionadas com o sentido da vida, os sistemas de valores e estilos de vida, perguntando se a sociedade informática dará o passo para a materialização do ideal dos humanistas: o homem universal, cidadão do mundo com formação global e cultura internacional. Por outro, as questões da política e das relações de poder, perguntando qual será a repercussão da atual revolução industrial, com os avanços da informática, sobre o papel e as funções do Estado (centralização X descentralização; governo local X autogoverno). Aqui a questão central parece ser: quem deverá gerir este processo informático generalizado?
Mesmo que se possa concordar que mudanças na formação cultural das sociedade informatizadas poderão materializar o ideal de um cidadão universal bem informado e com formação global e que a informática pode abrir espaço para o exercício de formas de democracia direta em governos locais, é importante ter presente, alerta Adam Schaff, que a atual revolução tecnológica de modo algum nos conduz automaticamente a uma forma superior de democracia. Ao contrário, diz Schaff, se não houver a ação política dos partidos populares e das entidades organizativas dos trabalhadores, um desenvolvimento possível para a sociedade informática é a divisão social entre quem tem e quem não tem acesso à tecnologia (a atualmente chamada exclusão digital).
Já Alvin Toffler, com uma visão bastante otimista sobre o potencial e as virtudes da tecnologia, descreve em Powershift, de 1990, a ascensão de um novo sistema de meios de comunicação, inseparável de um novo sistema de criação de riqueza. Para Toffler, “numa economia baseada no conhecimento, o problema político interno mais importante não é mais a distribuição (ou redistribuição) da riqueza, mas da informação e dos meios de informação que produzem riqueza”(Toffler, 1990:389). Segundo o autor, já é possível reconhecer profundas tensões sociais provocadas pela introdução desta nova forma de economia, em especial a “divisão da população em inforrica e infopobre” (Toffler, 1990:384), sendo que as possibilidades de superação dos “problemas relacionados com a maneira pela qual o conhecimento é disseminado na sociedade” (Toffler, 1990:387) passam especialmente pela articulação do sistema educacional com o sistema de meios de comunicação e pelo completo desenvolvimento dos princípios da interatividade, mobilidade, conversabilidade, conectividade, ubiqüidade e globalização, considerados por ele como os princípios definidores do sistema de meios de comunicação do futuro.
Numa perspectiva mais próxima da de Castells, inclusive compartilhando o mesmo tipo de preocupação metodológica, Lucília Machado examina com rigor as transformações tecnológicas e gerenciais/organizacionais do final do século passado, ainda que com as limitações decorrentes da dimensão de um artigo. Segundo Machado(9), estamos observando a emergência de um novo padrão internacional de competitividade capitalista, caracterizado pela redefinição do modelo de indústria, a expansão do terciário e alterações na estrutura de empregos, nas relações trabalhistas, na estrutura ocupacional e nas definições de trabalho qualificado e trabalho desqualificado, tudo isso resultando em uma mudança substancial no padrão de exploração da classe trabalhadora em escala mundial(10).
Conforme Machado, o atual padrão de exploração da força de trabalho - resultante das modificações na base técnica provocadas pela introdução da microeletrônica e da informática - baseia-se no trabalho flexível e integrado. Tornado possível pela versatilidade dos equipamentos, passíveis de reprogramação via software o trabalho flexível e integrado implica na habilidade para o desempenho de várias funções simultâneas e conexas e na intercambialidade dentro do coletivo de trabalho e apresenta novas exigências aos trabalhadores, como a capacidade de seleção, tratamento e interpretação de informações, comunicação e integração grupal, a antevisão de problemas, a capacidade de resolução de imprevistos, a atenção e a responsabilidade, além das variáveis de tipo comportamental como abertura, criatividade, motivação, iniciativa, curiosidade e vontade de aprender e de buscar soluções.
As mudanças na organização do trabalho e a introdução de novas tecnologias de gestão e de produção exigem um novo estilo de trabalhador, que necessita de habilidades gerais de abstração, comunicação e integração. Estas habilidades são próprias de serem aprendidas na escola durante a instrução regular, e esta é a raiz do recente interesse das classes dominantes pela qualidade escolar, ao contrário do período anterior ao esgotamento do padrão taylorista-fordista, no qual a educação desempenhava um papel periférico, pois o trabalhador não precisava de grandes conhecimentos técnicos ou de habilidades especiais, sendo preparado na própria linha de produção através do treinamento.
Manuel Castells apresenta em A sociedade em rede uma importante contribuição para o debate sobre a morfologia social das sociedades de tecnologia avançada neste início de novo século. Fundamentando-se em amplo conjunto de informações empíricas e numa refinada teoria sociológica, Castells descreve a sociedade contemporânea como uma sociedade globalizada, centrada no uso e aplicação de informação e conhecimento, cuja base material está sendo alterada aceleradamente por uma revolução tecnológica concentrada na tecnologia da informação e em meio a profundas mudanças nas relações sociais, nos sistemas políticos e nos sistemas de valores.
Para examinar a complexidade da "nova economia, sociedade e cultura em formação" (Castells, 1999:24) Castells utiliza como ponto de partida a revolução da tecnologia da informação, por sua "penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana" (p. 24), e alerta que "devemos localizar este processo de transformação tecnológica revolucionária no contexto social em que ele ocorre e pelo qual está sendo moldado" (Castells, 1999: 24), como é de praxe na boa sociologia praticada pelos clássicos.
A contribuição de Castells à discussão apresenta quatro aspectos principais: a centralidade da tecnologia da informação; o refinamento da teoria sociológica, com a proposição da articulação do conceito clássico de modo de produção à noção, por ele desenvolvida, de modo de desenvolvimento; a compreensão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e tecnológico, deixando de lado a visão reducionista e ideologizada das perspectivas liberais do Estado mínimo; e a caracterização da sociedade informacional como uma sociedade em rede, com a morfologia social definida por uma topologia em forma de rede. Vale a pena dedicarmos alguns parágrafos a cada um dos tópicos apontados.
Sobre a sua compreensão do papel do Estado é suficiente citar uma frase contida na conclusão de uma erudita e esclarecedora digressão sobre o papel do Estado para o desenvolvimento industrial da Europa após o século 16 e para a não industrialização da China na mesma época. Ao comparar os dois processos Castells destaca que
"o que deve ser guardado para o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma época determinados" (Castells, 1999: 31).

Ao observar que a tecnologia da informação foi essencial para o processo de reestruturação do sistema capitalista a partir dos anos oitenta, Castells mostra que o desenvolvimento tecnológico foi moldado pela lógica e pelos interesses do capitalismo avançado, ainda que não tenha se restringido à expressão desses interesses, mesmo porque também o estatismo (Castells entende que há dois sistemas de organização social presentes em nosso período histórico: o capitalismo e o estatismo) tentou redefinir os meios de alcançar seus objetivos estruturais por meio da tecnologia da informação. O importante a reter aqui é a existência de uma inter-relação empírica entre modos de produção (capitalismo, estatismo) e modos de desenvolvimento (industrialismo, informacionalismo), a qual não acaba, porém, com a distinção analítica entre os conceitos. A abordagem de Castells assume uma perspectiva teórica clássica da sociologia, postulando "que as sociedades são organizadas em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção, experiência e poder" (Castells, 1999: 33). A produção é organizada em relações de classe que estabelecem a divisão e o uso do produto em termos de investimento e consumo. A experiência se estrutura pelas relações entre os sexos (até agora organizada em torno da família)e o poder tem como base o Estado e o monopólio do uso da violência.
É neste quadro teórico que Castells situa a nova estrutura social, que "está associada ao surgimento de um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo. É muito interessante a discussão teórica iniciada aqui sobre as diferenças entre sociedade da informação e sociedade informacional (Castells adota esta última, por analogia ao significado de sociedade industrial), mas não tenho espaço para apresentá-la. Restrinjo-me a indicar aqui a noção de modo de desenvolvimento: "procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria para gerar o produto, em última análise, determinando o nível e a qualidade do excedente" (Castells, 1999:34). Cada modo de desenvolvimento é definido pelo elemento que promove a produtividade. Assim, o que define o modo informacional de desenvolvimento é a "ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade"(Castells, 1999: 35), o que, segundo o autor, nos conduz a um novo paradigma tecnológico, baseado na tecnologia da informação.
A essa altura Castells apresenta como característica importante da sociedade informacional, ainda que não esgote todo o seu significado, "a lógica de sua estrutura básica em redes, o que explica o uso do conceito de 'sociedade em rede'" (Castells, 1999: 46, nota 33). O surgimento da sociedade em rede torna-se possível com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação que, no processo, "agruparam-se em torno de redes de empresas, organizações e instituições para formar um novo paradigma sociotécnico" (Castells, 1999: 77) cujos aspectos centrais, representam a base material da sociedade da informação. Assim como Toffler(12) apresenta as seis caraterísticas do novo sistema de meios de comunicação que, na sua análise, suportam e dão origem a um novo sistema de produção e distribuição de riqueza e de poder, Castells nos mostra os cinco aspectos centrais do novo paradigma: a informação é matéria-prima; as novas tecnologias penetram em todas as atividades humanas; a lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações usando essas novas tecnologias; a flexibilidade de organização e reorganização de processos, organizações e instituições; e, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado, conduzindo a uma interdependência entre biologia e microeletrônica (Castells, 1999: 78-9).
Para finalizar é preciso ainda apresentar, mesmo que rapidamente, o conceito de rede trabalhado por Castells. O conceito de rede parte de uma definição bastante simples - "rede é um conjunto de nós interconectados" (p. 498)- mas que por sua maleabilidade e flexibilidade oferece uma ferramenta de grande utilidade para dar conta da complexidade da configuração das sociedades contemporâneas sob o paradigma informacional. Assim, diz Castells, definindo ao mesmo tempo o conceito e as estruturas sociais empíricas que podem ser analisadas por ele,
"redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio" (Castells, 1999: 499)

Esta definição dá ao autor uma ferramenta poderosa para suas análises e observações e lhe permite apresentar alguma conclusões provisórias sobre os processos e funções dominantes na era da informação, indicando que "a nova economia está organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação" (Castells, 1999: 499) e que "os processos de transformação social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede ultrapassam a esfera das relações sociais e técnicas de produção: afetam a cultura e o poder de forma profunda" (Castells, 1999: 504).


Notas
1. TOFFLER, Alvin. Powershift. RJ: Record, 1990
2. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.
3. SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1995
4. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
5. SCHAFF, Adam. Op. cit.
6. TOFFLER, Alvin. Op. cit.
7. MACHADO, Lucília. Op. cit.
8. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
9. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37
10. Para Machado, op. cit., a concorrência intercapitalista em torno da acumulação de tecnologia exige contínuos ajustamentos da base técnica da produção às determinações das necessidades de valorização do capital: a competitividade requer contínuo aumento da produtividade pelo aumento do controle e da racionalização do trabalho e pela redução dos custos de cada unidade produzida. Contudo, diz a autora, a posterior (e cada vez mais rápida) generalização da inovação tecnológica conduz à perda relativa da rentabilidade, que pode provocar uma nova era de crise de acumulação em virtude do esgotamento da base técnica em uso. Na busca de uma mais-valia relativa extraordinária, completa Machado, a concorrência intercapitalista força a obsolescência do padrão tecnológico vigente e patrocina novas inovações tecnológicas, as quais exigem o aumento da composição orgânica do capital, ou seja, maior investimento em capital constante em detrimento do capital variável, o que, em última instância, significa aumento do desemprego
11. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
12. Op. cit.



Referências bibliográficas
1. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
2. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
3. SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1995
4. TOFFLER, Alvin. Powershift. Rio de Janeiro: Record, 1990
5. MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.


* Texto de trabalho, escrito como roteiro para aulas da disciplina de sociologia no curso de ciências sociais da Unisc.
** Caco Baptista é sociólogo, mestre em Ciências Sociais, com especialização em Antropologia Social e em Administração Universitária. Doutorando em sociologia no PPGS-UFRGS. Professor do departamento de Ciências Humanas da UNISC. caco@unisc.br

terça-feira, 24 de março de 2009

Universidade e inovação tecnológica na sociedade informacional *

Neste texto pretendo discutir, numa abordagem sociológica, alguns aspectos da relação entre a universidade e a inovação tecnológica no contexto das transformações históricas em curso na sociedade contemporânea, as quais irei caracterizar como uma revolução tecnológico-informacional que dá origem a um novo paradigma sócio-técnico que está na base da constituição de uma nova forma social, a sociedade em rede.
A abordagem sociológica da inovação tecnológica precisa ser uma abordagem ampla, que dê conta tanto dos seus aspectos propriamente científicos e tecnológicos como dos aspectos sociais e econômicos, tal como foi tratada a questão no Seminário de Sociologia da Inovação ministrado no segundo semestre de 2004 pelo professor Renato de Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de
"estimular a reflexão sobre o fenômeno da Inovação em Ciência e Tecnologia desde uma perspectiva sociológica, ressaltando a possibilidade de esta permitir uma abordagem ampla que, levando em conta a complexidade do fenômeno e integrando suas dinâmicas econômica, histórica e sócio-culturais, contribui para evitar reducionismos tecnicistas" (Oliveira, 2004:1),

o referido seminário buscou integrar as abordagens clássicas de Karl Marx1 e Max Weber2 com a também clássica teoria econômica de J. Schumpeter3 e a análise filosófica empreendida por Hannah Arendt4, como pré-condição para o estudo da inovação no capitalismo contemporâneo5 e a posterior análise dos novos significados da tecnologia na economia do conhecimento e na sociedade em rede6.
No espírito do que foi tratado no Seminário, o que se espera como resultado desta discussão é poder avançar algumas possibilidades de resposta para a questão de como fomentar inovações em ambientes sociais concretos, ou seja, como gerar uma capacidade de inovação tecnológica e social num país, numa região ou numa comunidade. Para isso é preciso começar perguntando o que é inovação.

Inovação econômica no capitalismo
Como ponto de partida assumo o pressuposto geral do Seminário supra-referido, de que a inovação é um fenômeno da modernidade ocidental, mais especificamente do capitalismo, que precisa ser tratado no âmbito de uma teoria da ação e que depende da existência de um sujeito que inova. Esse pressuposto nos conduz à compreensão de que a inovação é um fenômeno que vai contra a tradição e que para se impor precisa superar os arranjos costumeiros que garantem a estabilidade de qualquer sistema social, ou seja, a inovação não depende da demanda, mas da ação de empreendedores dotados de inventividade.
Esta perspectiva já está colocada na análise de Max Weber e é bastante detalhada por Giovanni Arrighi em sua retomada da noção schumpeteriana do "fluxo circular da vida econômica" para entender as ondas longas de "depressão" e "prosperidade" do capitalismo. Para Max Weber, cuja preocupação central de não é com o capitalismo mas com a modernização e racionalização do mundo, a inovação é uma necessidade da economia capitalista, pois sem ela esta não supera seus limites naturais. Weber entende a ciência e a técnica como componentes essenciais de um processo de racionalização que estrutura um modo de pensamento dentro do qual os sujeitos adquirem a capacidade de agir em relação a fins, isto é, adquirem uma racionalidade. Para ele o capitalismo é um fenômeno resultante de um processo de racionalização do mundo que se restringe ao Ocidente, e a economia capitalista só pode ser compreendida no contexto da produção de uma racionalidade que passa pelo terreno da ética e da constituição do indivíduo como um sujeito autônomo, capaz de pensar e agir em conseqüência do que pensa. Ao colocar a inovação dentro da âmbito de uma teoria da ação7 que concebe o indivíduo como um sujeito autônomo, Weber coloca a liberdade como um problema central para a sociologia da inovação ao perguntar em que condições certos indivíduos são capazes de realizar a inovação, isto é, de romper com a tradição na atividade econômica.
Giovanni Arrighi tem como ponto de partida de sua análise do capitalismo contemporâneo o modelo de Schumpeter8, mas critica o fato de a teoria do fluxo circular de riquezas conduzir à compreensão da economia como uma atividade estática e fechada em si mesma, dando demasiada ênfase à tendência de gerar ordens costumeiras, ou seja, "regras e normas de interação que minimizam as chances de grandes interrupções no fluxo circular da vida econômica" (Arrighi, 1997:21). Para Arrighi a especificidade do capitalismo é a intermediação de empresas capitalistas no fornecimento de insumos e produtos, as quais estão voltadas continuamente para a geração de lucro através do estabelecimento, alongamento, aprofundamento e reestruturação de cadeias de mercadorias, isto é, de "novas combinações insumo-produto" (Arrighi, 1997: 21-2), matriz das inovações econômicas. Arrighi procura aperfeiçoar o modelo de Schumpeter descrevendo a economia como um sistema em equilíbrio constituído por três subsistemas interdependentes - o sistema de Estado, o sistema interempresas e o sistema de domicílios - cada um deles voltado para um tipo específico de produção e com um tipo específico de demanda e que mantém relações complexas entre si: o Estado produz proteção para empresas e domicílios, as empresas produzem meios de proteção para o Estado e meios de subsistência para os domicílios e estes produzem trabalhadores para o Estado e para as empresas. O Estado tem por objetivo a acumulação de poder, as empresas buscam a acumulação de capital e os domicílios buscam segurança e estabilidade. Como os Estados não existem isolados, gera-se um sistema interestados. As empresas, por sua vez, num sistema mundial, relacionam-se com o seu Estado mas também com outros Estados, de modo que temos uma competição entre empresas (o sistema interempresas), competição entre Estados (o sistema interestados) e competição entre o sistema de empresas e os Estados. Entendendo os domicílios como o espaço do hábito e do costume, Arrighi apresenta a empresa como o espaço onde se dá a inovação. Contudo, embora a inovação surja na empresa, é preciso o apoio do Estado, tornando necessária uma aliança entre empresas e Estados9.
O que propicia que a inovação surja no sistema interempresas é a lógica própria desse sistema: a acumulação para melhorar a posição relativa no sistema. Ou seja, para subsistir as empresas precisam acumular, mas o que lhes interessa não é o seu volume bruto de acumulação e sim a sua posição relativa frente a outras empresas. Para melhorar sua posição relativa as empresas entram em luta competitiva e isso gera um fator de desequilíbrio no sistema: a inovação (Arrighi, 1997: 21-2)10, que será definida por Arrighi como "a introdução de novos métodos de produção, novas mercadorias, novas fontes de suprimento, novas rotas de comércio e mercados e novas formas de organização" (Arrighi, 1997:148).
Penso que o modo como Arrighi coloca a questão da inovação econômica no capitalismo é bastante profícuo para a análise da concorrência intercapitalista, tanto ao nível da competição entre empresas como entre países, mas entendo que para dar conta da compreensão da transformação histórica que estamos vivendo e de seus desdobramentos na organização da atividade produtiva11 e na cultura12, é preciso enfatizar o caráter tecnológico e informacional da "nova economia" e abordar a inovação tecnológica.


Inovação tecnológica na sociedade em rede
As três últimas décadas do século XX foram palco de uma das mais extraordinárias mudanças históricas já vistas pela humanidade, comparável, em sua magnitude, ao conjunto de transformações econômicas, políticas, culturais, sociais e tecnológicas que caracterizaram o surgimento do mundo moderno. A globalização, tecnização e informatização da sociedade contemporânea têm provocado profundas alterações na organização da atividade produtiva, com a passagem do modelo taylorista-fordista13, para o modelo da especialização flexível14.
Estas transformações, que continuam em curso neste início de século, têm sido objeto da atenção de diversos autores que, sob diferentes perspectivas, concordam que as novas opções tecnológicas e organizacionais utilizadas para superar o esgotamento da base técnica em uso não incidem apenas sobre o processo de trabalho, mas são mudanças societais15 que caracterizam uma ruptura com os padrões da sociedade industrial. Chamada de sociedade pós-industrial (Lyotard, s.d.), sociedade informática (Schaff, 1995), sociedade tecnizada (Machado, 1993) ou sociedade em rede (Castells, 1999), a nova forma social que se vislumbra sob estas transformações é a de uma sociedade globalizada e altamente tecnizada, na qual a produção econômica se vale de uma utilização intensiva do conhecimento através das inovações tecnológicas oferecidas pela microeletrônica, pela informática, pela biotecnologia e pelas novas tecnologias de comunicação.
Este novo padrão de concorrência intercapitalista em torno da acumulação de tecnologia exige contínuos ajustamentos da base técnica da produção às determinações das necessidades de valorização do capital. A competitividade requer contínuo aumento da produtividade pelo aumento do controle e da racionalização do trabalho e pela redução dos custos de cada unidade produzida. Para tanto, busca-se diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado a cada mercadoria através de inovações tecnológicas e organizacionais com vistas à elevação dos lucros. Contudo, a posterior (e cada vez mais rápida) generalização da inovação tecnológica pode provocar uma nova era de crise de acumulação e a conseqüente perda relativa da rentabilidade. Nessa lógica, para garantir a lucratividade e a capacidade de acumulação de cada empresa, a concorrência intercapitalista força a obsolescência do padrão tecnológico vigente e patrocina novas inovações tecnológicas e assim sucessivamente.
Nessa nova forma social que vem sendo gestada nas três ou quatro últimas décadas, quando o conhecimento passou a assumir posição privilegiada como fonte de poder e de riqueza, e a produtividade e a competitividade a depender predominantemente da capacidade de gerar e aplicar produtivamente o conhecimento na produção de inovações tecnológicas, é possível falar, como Castells, que estamos vivendo em uma "nova economia", a qual "se desarrolla de forma desigual y de forma contradictoria, pero que se desarrolla en todas las áreas del mundo" (Castells, 2000: 1). Conforme Castells, esta nova economia pode ser caracterizada por três grandes aspectos interrelacionados:
"es una economia que esta centrada en el conocimiento y en la información como bases de producción de la productividad y bases de la competitividad, tanto para empresas como para regiones, ciudades y países" (Castells, 2000: 1)
"es una economia global. Global no quiere decir que todo esté globalizado, sino que las actividades económicas dominantes están articuladas globalmente y funcionam cómo una unidad en tiempo real" (Castells, 2000: 2)
"es una economia que funciona en redes, en redes descentralizadas dentro de la empresa, en redes entre empresas y en redes entre las empresas y sus redes de pequeñas y medias empresas subsidiárias" (Castells, 2000: 2)
Castells enfatiza que esta "nova economia" tem uma base tecnológica, constituída por tecnologias de informação e comunicação de base microeletrônica, e uma forma central de organização, que ele entende ser a internet: "internet no es una tecnologia, internet es una forma de organización de la actividad"(Castells, 2000: 3). Dessa forma Castells apresenta a internet como equivalente à fábrica na era industrial: "lo que era la fabrica en la gran organización en la era industrial, es internet en la Era de la Información" (Castells, 2000: 3). Com base nesta concepção Castells irá desenvolver a noção de "sociedad red", uma sociedade cuja estrutura social é construída a partir de redes de informação com base na tecnologia de informação microeletrônica da internet. Ou seja, a internet
"constituye la base material y tecnológica de la sociedade red, es la infraestructura tecnológica y el medio organizativo que permite el desarrollo de una serie de nuevas formas de relación social que no tienen su origen en internet, que son fruto de una serie de cambios históricos pero que no podrían desarrollarse sin internet. (...) Internet es el corazón de un nuevo paradigma sociotécnico que constituye en realidad la base material de nuestras vidas y de nuestras formas de relación, de trabajo y de comunicación. Lo que hace internet es procesar la virtualidad y transformarla en nuestra realidad, constituyendo la sociedad red, que es la sociedad en que vivimos" (Castells, 1998: 12).

Estas idéias são aprofundadas por Castells em A sociedade em rede (Castells, 1999), o primeiro volume de sua monumental trilogia A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Neste livro, cuja elaboração durou doze anos, o autor fundamenta-se em amplo conjunto de informações empíricas e procura dar conta da descrição e análise das estruturas sociais emergentes no final do século vinte.
A contribuição de Castells à nossa discussão apresenta quatro aspectos principais: a centralidade da tecnologia da informação; o refinamento da teoria sociológica, com a proposição da articulação do conceito clássico de modo de produção à noção, por ele desenvolvida, de modo de desenvolvimento; a compreensão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e tecnológico, deixando de lado a visão reducionista e ideologizada das perspectivas liberais do Estado mínimo; e a caracterização da sociedade informacional como uma sociedade em rede.
Sobre o papel do Estado penso que é suficiente citar uma frase contida na conclusão de uma erudita e esclarecedora digressão sobre a importância do Estado para o desenvolvimento industrial da Europa após o século 16 e para a não industrialização da China na mesma época. Ao comparar os dois processos Castells destaca que
"o que deve ser guardado para o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma época determinados" (Castells, 1999: 31).

Ao observar que a tecnologia da informação foi essencial para o processo de reestruturação do sistema capitalista a partir dos anos 1980, Castells mostra que o desenvolvimento tecnológico foi moldado pela lógica e pelos interesses do capitalismo avançado, ainda que não tenha se restringido à expressão desses interesses, mesmo porque também o estatismo16 tentou redefinir os meios de alcançar seus objetivos estruturais por meio da tecnologia da informação. O importante a reter aqui é a existência de uma inter-relação empírica entre modos de produção (capitalismo, estatismo) e modos de desenvolvimento (industrialismo, informacionalismo), a qual, contudo, não dissolve a distinção analítica entre os dois conceitos. A abordagem de Castells assume uma perspectiva teórica clássica da sociologia, postulando "que as sociedades são organizadas em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção, experiência e poder" (Castells, 1999: 33). A produção é organizada em relações de classe que estabelecem a divisão e o uso do produto em termos de investimento e consumo. A experiência se estrutura pelas relações entre os sexos (até agora organizada em torno da família) e o poder tem como base o Estado e o monopólio do uso da violência.
É neste quadro teórico que Castells situa a nova estrutura social, que "está associada ao surgimento de um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo. É muito interessante a discussão teórica iniciada aqui sobre as diferenças entre sociedade da informação e sociedade informacional (Castells adota esta última, por analogia ao significado de sociedade industrial), mas não tenho espaço para apresentá-la, restringindo-me a indicar o que é a noção de modo de desenvolvimento: "procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria para gerar o produto, em última análise, determinando o nível e a qualidade do excedente" (Castells, 1999:34). Cada modo de desenvolvimento é definido pelo elemento que promove a produtividade. Assim, o que define o modo informacional de desenvolvimento é a "ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade"(Castells, 1999:35), o que, segundo o autor, nos conduz a um novo paradigma tecnológico, baseado na tecnologia da informação.
A essa altura Castells apresenta como característica importante da sociedade informacional, ainda que não esgote todo o seu significado, "a lógica de sua estrutura básica em redes, o que explica o uso do conceito de 'sociedade em rede'" (Castells, 1999:46, nota 33). O surgimento da sociedade em rede torna-se possível com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação que, no processo, "agruparam-se em torno de redes de empresas, organizações e instituições para formar um novo paradigma sociotécnico" (Castells, 1999:77), cujos aspectos centrais representam a base material da sociedade da informação.
Castells destaca cinco aspectos centrais do novo paradigma: a informação é matéria-prima; as novas tecnologias penetram em todas as atividades humanas; a lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações usando essas novas tecnologias; a flexibilidade de organização e reorganização de processos, organizações e instituições; e, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado, conduzindo a uma interdependência entre biologia e microeletrônica (Castells, 1999: 78-9).
Para finalizar este brevíssimo resumo das idéias desenvolvidas por Castells, entendo que é preciso apresentar o seu conceito de rede, que parte de uma definição inicialmente muito simples - "rede é um conjunto de nós interconectados" (Castells, 1999: 498) - e vai evoluindo em complexidade até nos oferecer uma ferramenta de grande utilidade para dar conta da complexidade da configuração das sociedades contemporâneas sob o paradigma informacional. Assim, diz Castells, definindo ao mesmo tempo o conceito e as estruturas sociais empíricas que podem ser analisadas por ele,
"redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio" (Castells, 1999: 499)

Esta definição dá ao autor uma ferramenta poderosa para suas análises e observações e lhe permite apresentar alguma conclusões provisórias sobre os processos e funções dominantes na era da informação, indicando que "a nova economia está organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação" (1999: 499) e que "os processos de transformação social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede ultrapassam a esfera das relações sociais e técnicas de produção: afetam a cultura e o poder de forma profunda" (1999: 504).


A Universidade e a inovação tecnológica na sociedade em rede
As mudanças na organização do trabalho, a introdução de novas tecnologias de gestão e de produção, a centralidade das tecnologias de informação e comunicação e a ubiqüidade da internet na sociedade contemporânea exigem um novo tipo de trabalhadores altamente qualificados, dotados de conhecimento e de informação e de habilidades gerais de abstração, comunicação e cooperação, que sejam capazes de produzir, disseminar e operar as inovações tecnológicas que sustentam esta nova economia e esta nova sociedade. Como destaca Manuel Castells, "son innovadores capaces de tener ideas y aplicarlas, los que constituyen, realmente, la materia prima de esta nueva economia" (2000:6).
Se queremos, como foi dito na página inicial deste trabalho, gerar uma capacidade de inovação tecnológica e social num país, numa região ou numa comunidade, precisamos de pessoas com conhecimento e idéias, que tenham curiosidade intelectual e que saibam pesquisar, filtrar, selecionar e utilizar com criatividade as informações disponíveis nas inúmeras bases de dados e meios de informação existentes na internet. Estas pessoas, como diz ironicamente Castells, "no se generan por razones genéticas, ¿cierto?" (Castells, 2000: 6) e, portanto é necessário produzi-las. Para isso é fundamental a educação. Mas educação, o sabemos, não se resume ter boas escolas (aliás, o que é uma boa escola?). Trata-se é de desenvolver um sistema educativo capaz de formar pessoas com autonomia intelectual e agilidade de pensamento, que sejam capazes de auto-programação e de aquisição de conhecimentos pelo resto da vida.
Isto inclui desde a pré-escola até a universidade, claro – e a universidade tem papel central e preponderante na constituição desse sistema, como será referido a seguir – mas é preciso ir além. A formação de capacidade de inovação numa região passa pelo conceito de cidade educativa17, definida por Castells como "el conjunto de del sistema de relaciones sociales locales que produce un sistema de información interactiva, que desarrolla la capacidad educativa en un sentido amplio y no simplesmente de adquisición de conocimientos" (Castells, 2000: 6).
Tanto nesse processo de desenvolvimento da "cidade educativa", como no sentido mais amplo de construção de uma capacidade de inovação tecnológica em contextos sociais concretos, destaca-se o papel da universidade. Castells, para quem a capacidade em inovação tecnológica e empresarial na nova sociedade em rede precisa de meios de inovação concentrados territorialmente, destaca a cidade como um desses meios de inovação, que funcionam como centros de atração dos dois elementos chave dos sistemas de inovação tecnológica: "la capacidad de innovación, es decir, talento, personas com conocimiento y ideas, y (...) capital, sobretodo capital riesgo, que es el capital que permite la innovación" (Castells, 2000: 5). E, completa Castells, a relação entre cidade e universidade é fundamental na nova economia. Não apenas porque as universidades são fatores de crescimento econômico, tecnológico e empresarial, mas porque "son un factor de creación de ciudad (...) un elemento esencial de la producción de mano de obra cualificada, de innovadores y de personas com ideas nuevas" (Castells, 2000: 7). Afinal, a "nova economia" depende de gente que aprende a pensar ou a enfocar as coisas de novas maneiras, e isso depende fundamentalmente da qualidade do sistema de educação universitária.
E aqui encontramos talvez o nó górdio da indução de capacidade local de inovação tecnológica. Isso porque, ainda com Castells, embora a universidade "debe ser y debiera ser el centro de innovación fundamental, puesto que es lo que está en la vanguardia del pensamiento y, de manera autónoma y independiente, debiera plantear los problemas que (...) la sociedad no puede plantear" (Castells, 1998:1), o que encontramos mais freqüentemente nas universidades frente ao risco da inovação são reações conservadoras, defesa de privilégios corporativos e uma imensa preocupação com a comodidade pessoal que se manifestam na adesão cega e irracional a rotinas burocráticas.
As necessidades crescentes de construção de capacidade de inovação colocadas pelo contexto político, econômico, social e tecnológico da sociedade em rede descrita nas páginas anteriores têm desafiado as universidades para que se incorporem às novas formas de pensar, fazer e pesquisar da era da informação e para que ofereçam maior flexibilidade e melhor qualidade na oferta de serviços educacionais, garantindo um acesso mais amplo a uma educação superior de maior qualidade através do uso das novas tecnologias da informação e comunicação. Mais ainda, este esforço não deve ser restrito à área acadêmica, com a introdução de novas metodologias e tecnologias educacionais, mas deve se estender também à área administrativa, com a adoção de novas técnicas e metodologias de gestão. Em todas as áreas de atuação da universidade as novas tecnologias da informação e da comunicação podem transformar a maneira como as tarefas são realizadas, desvelando toda uma série de novos relacionamentos e alianças, e podem mesmo chegar a revolucionar o modo de operação e a estrutura da universidade.
Conforme foi visto, vivemos hoje na era da informação e na sociedade rede, uma forma social na qual o conhecimento é hiper-acelerado (dependendo do campo de conhecimento o estoque de saber muda em poucos meses), de modo que os diplomas iniciais são obsoletos em pouquíssimo tempo e temos de aprender a aprender permanentemente. Ao mesmo tempo, os problemas são crescentemente pluridisciplinares e os campos do saber são explodidos e se interpenetram cada vez mais, de modo que as disciplinas acadêmicas estão ultrapassadas e o conhecimento universitário é utilizado não mais em profissões mas em "funções de trabalho". Estima-se que exista algo em torno de 12 a 18 mil funções de trabalho, de forma que uma carreira profissional permite atuar em centenas de funções de trabalho. Como as grandes universidades oferecem não mais do que 100 cursos/carreiras, um dos grandes dramas da universidade é formar para 12 a 18 mil funções de trabalho com não mais de 100 carreiras, o que explica as dificuldades da universidade para cumprir com as exigências do mercado de trabalho. Por outro lado, mesmo perplexa e desorientada frente à realidade da sociedade do conhecimento, a universidade permanece como um dos pilares mais sólidos e mais necessários da sociedade contemporânea, ainda que seja evidente sua necessidade de transformar-se para satisfazer melhor às necessidades do seu entorno social.
Neste quadro, não se justifica mais, por exemplo, a separação disciplinar do conhecimento e a estruturação da universidade numa estrutura hierárquica tipo árvore – em que a universidade é construída pela criação de faculdades que, por sua vez se dividem em departamentos que de dividem em matérias que se dividem em disciplinas. A capacidade de adaptação às mudanças referidas acima exige a superação da fragmentação das unidades através da criação de unidades mais amplas que promovam as interações entre todos os elementos constituintes da universidade. Estas interações devem ser buscadas e estimuladas de diversas formas, desempenhando papel importante neste tópico as redes eletrônicas, mas sem descuidar da construção de ambientes de comunicação que permitam interações as mais diversas, inclusive locais e interpessoais.
Isto posto, é preciso ter claro que também no Brasil as transformações societais que afetaram o mundo nestas últimas décadas chegaram causando um forte impacto na dinâmica econômica e na organização da sociedade, bem como no âmbito da educação superior, onde podem ser identificados, ao lado do reconhecimento da importância da educação superior como fator crítico para a competitividade do país numa economia mundial centrada no valor econômico do conhecimento e de uma crescente expansão, diversificação e segmentação da demanda por educação superior em todas as suas modalidades, o acirramento e a desterritorialização da concorrência entre as universidades e exigências crescentes por maior qualidade, flexibilidade e dinamismo na oferta de seus serviços.
Assim, para a construção de capacidade de inovação em contextos sociais concretos – e considerando, como foi dito anteriormente, que a inovação tecnológica ocorre na empresa mas depende da interação entre empresa e universidade e da atuação do Estado, seja na formatação de políticas de inovação, seja no financiamento da pesquisa tecnológica – é necessário tanto capacitar a universidade brasileira a gerar conhecimento voltado para a inovação tecnológica e a formar pessoas capazes de trabalhar nos centros de P&D empresariais, quanto estimular o setor empresarial a investir em P&D, a abrir seus laboratórios para estágios remunerados e a buscar financiamento para o desenvolvimento de projetos conjuntos com as universidades.
Para intensificar o diálogo entre universidade e empresas, um instrumento importante seria a constituição de conselhos consultivos nas universidades com a participação efetiva de representantes de empresas inovadoras ou de suas entidades representativas. Estes conselhos teriam, entre outras, as funções de assessorar a administração dos cursos, manter os currículos atualizados, assegurar o funcionamento de um sistema de estágios e ajudar a colocar os profissionais no mercado, além de funcionarem como "antenas" para a criação de cursos que atendam às necessidades das novas funções de trabalho demandadas pela sociedade.
Outro mecanismo para a priorização da geração de conhecimento voltado à inovação tecnológica e facilitar a relação entre universidade e empresas seria a criação de algum tipo de interface (entidade, fundação, etc.) para fazer a "ponte" do conhecimento científico com a aplicação industrial inovadora, além da inclusão, na missão da universidade (ou na sua carta de objetivos prioritários) a explicitação formal da necessidade da ligação com as empresas inovadoras e da ênfase no desenvolvimento da inovação tecnológica.
Por fim, nesta listagem certamente inicial e incompleta, seria fundamental tocar na questão dos fundos públicos para a indução da inovação, instituindo-se mecanismos de contrapartida que garantam que o aumento do investimento público na pesquisa científica e tecnológica conduza ao aumento dos investimentos da iniciativa privada.
E como as universidades não existem soltas no espaço, mas sim fortemente ancoradas numa região, é preciso que haja um estímulo às universidades regionais, entendidas estas como universidades que definam-se em função do seu entorno, que estabeleçam o que querem ser sempre considerando as necessidades do desenvolvimento regional.
É preciso ter claro que a universidade precisa reencontrar seu sentido nesse novo mundo complexo, turbulento e interligado por redes as mais diversas. Num mundo convertido numa grande rede de comunicações e suporte à informação (Castells, 1999) a universidade não pode mais se fechar dentro de si mesma, precisando, ao contrário, articular-se com as demais entidades e instituições em todo o planeta, compartilhando pessoas e recursos. Ao mesmo tempo, compreendendo que nesta grande rede de comunicações coexistem sistemas complexos que interagem fortemente procurando adaptar-se a um ambiente que se modifica na medida mesma em que os sistemas interagem entre si e com o ambiente, a universidade também precisa perceber-se como um sistema complexo que precisa modificar-se continuamente para adaptar-se às alterações do ambiente em que existe.
Ao lado da pertinência e da relevância social das suas atividades - maior qualidade e diversidade de serviços educacionais, maior capacidade de resposta às demandas da sociedade, maior relevância da produção intelectual e da pesquisa, ampliação do acesso à graduação, ênfase nas relações internacionais e interinstitucionais (UNESCO, 1999) - as universidades precisarão também se preocupar com a competitividade - maior eficiência e eficácia dos processos, estruturas mais flexíveis, decisões mais ágeis e melhor informadas, gestão mais profissional - e com a ampliação e aperfeiçoamento da interatividade com a comunidade – tanto a comunidade acadêmica internacional como a comunidade local/ regional e o setor empresarial.
Existindo num ambiente turbulento e em constante movimento, a universidade precisa perceber que seu objeto específico de atuação, o conhecimento, modifica-se num ritmo cada vez mais rápido de inovações científicas e tecnológicas, o que tem conseqüências diretas e impactantes para a universidade, que precisa tomar decisões cruciais sobre seus modos de organização e funcionamento, sempre tendo em mente que sua competência específica, aquilo que justifica a sua existência e para o que foi criada, é a capacidade de criar, difundir e aplicar conhecimento, formulando novas questões e gerando novas idéias, que sejam comprometidas com a transformação do presente e a construção do futuro.







Referências bibliográficas

ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la nueva economia. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2000. Disponível na Internet em http://www.fbg.ub.es e em http://www.lafactoriaweb.com/articulos/castells12.htm (acessado em 30/03/2003).
_______________. Internet y la sociedad red. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya, 1998. Disponível na Internet em http://campus.uoc.es/web/cat/index.html e em http://iigov.org/documentos/ (acessado em 21/01/2003).
_______________. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LIPIETZ, Alain. Audácia. Uma proposta para o século XXI. São Paulo: Nobel, 1991.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, s.d.
MACHADO, Lucília. "Sociedade industrial X sociedade tecnizada". São Paulo, Universidade e Sociedade, ano III, n. 5, julho 1993, p. 32-37.
SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: UNESP/Brasiliense, 1995.
SCHWARTZ, Gilson. "Guimarães Rosa na Cidade Tiradentes: anotações sobre a Cidade do Conhecimento". São Paulo, São Paulo em Perspectiva, 16(4), 36-40, 2002.
UNESCO. Tendências da educação superior para o século XXI. Brasília: UNESCO/CRUB, 1999.

* Trabalho apresentado no Seminário de Sociologia da Inovação, ministrado pelo professor doutor Renato de Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (Doutorado) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS no segundo semestre de 2004.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cinema e realidade. Quantos mundos existem num olhar?

Estas notas têm origem nas emoções e pensamentos que me foram despertadas pelo documentário francês Ser e ter, um filme de grande beleza que faz um retrato muito sensível do cotidiano de uma escola multi-seriada no interior da França no final do século XX.
Este filme (exibido pela Associação dos Amigos do Cinema em 2005) ganhou premios de melhor montagem e teve indicações para o prêmio de melhor direção em diversos festivais na Europa e nos permite muitos níveis de discussão. Por exemplo, se quisermos discuti-lo como obra cinematográfica, poderíamos refletir sobre a opção de enquadramento, a posição da câmera, os planos, os cortes. Ou, se quisermos debater sua temática ou seu objeto, aquilo que ele mostra, poderíamos nos deter na discussão do sistema educacional, da classe unidocente ou multisseriada, da relação professor-aluno. Podemos nos deter nos alunos: quem são estas crianças, por que estão nessa escola, o que pensam, o que desejam. Podemos ainda usar o filme para pensar a nossa realidade brasileira: os professores das nossas escolas, as nossas escolas, as nossas crianças.
Mas como o filme se destaca pela direção e pela montagem, penso que este é um bom tema para pensar. Direção, montagem, edição. Que realidade é mostrada através desses mecanismos? Por definição, um documentário não é ficção. Ou seja, um documentário documenta a realidade. Mas que realidade ele documenta? E com que fidelidade é mostrada essa realidade?
Indo além, podemos perguntar quanta direção, montagem e edição existem não só num documentário mas nos telejornais, novelas e filmes de ficção? E nos livros didáticos? E nos editoriais? E nas falas dos palestrantes? E nas políticas governamentais? Então, que mundo é esse que nos é mostrado? Que realidade é essa a que temos acesso?
Paulo Freire, o grande mestre da nossa educação dizia que "nós vivemos no mundo e com o mundo" e com isso queria alertar para a necessidade de refletirmos sobre o mundo para poder mudá-lo no sentido da emancipação. Pois então, que mundo é esse que é o nosso mundo, o mundo em que vivemos?
Conforme a já clássica afirmação do sociólogo alemão Niklas Luhmann, “o que sabemos sobre o mundo, o sabemos através dos meios de comunicação para as massas”. Ou seja, os meios de comunicação (o cinema entre eles) servem, entre outras coisas, para trazer o mundo até nós. Mas que mundo é esse? Podemos confiar na realidade do mundo que os meios de massas nos apresentam? Para Luhmann, “sabemos tanto graças aos meios de comunicação de massas, que não podemos confiar em tal fonte”.
E então? O que é o mundo? O que é a realidade? Podemos alcançar a verdade? Podemos confiar no que vemos e ouvimos? Podemos acreditar no que nos contam e mostram?
Vamos começar de novo: vivemos no mundo e com o mundo. Mas que mundo é esse? Ora, é o mundo que conhecemos, o mundo que construímos ao conhecer e que é, ao mesmo tempo, o nosso entorno, o mundo com que nos acoplamos, que é trazido até nós, até o universo do nosso conhecimento, até o âmbito da nossa percepção. Como assim? Simples: não podemos estar em todos os lugares nem podemos ver todos os acontecimentos (não somos deuses, concordam?). Então, alguém precisa nos contar as coisas, nos relatar estes acontecimentos, nos reportar o que acontece nos mais diversos lugares. Os meios de comunicação, o cinema entre eles, fazem isso muito bem. Mas que acontecimentos eles nos trazem, que mundo eles nos mostram, que verdade eles nos contam? Qual é a realidade que vemos através das lentes dos meios de comunicação?
O mundo que nos é trazido, que conhecemos e a partir do qual refletimos, aprendemos, formamos opiniões, é um mundo que nos chega editado. Ou seja, o mundo que chega até nós passa por dezenas, centenas, talvez milhares de filtros. Ele percorre um trajeto no qual é redesenhado, reorganizado, remontado através desta diversidade de filtros.
Esses filtros – o rádio, a TV, o jornal, o cinema, nossos vizinhos e amigos, todos aqueles que nos contam coisas, que nos relatam acontecimentos, eventos, fatos – fazem o que? Esses filtros, que selecionam o que vamos ouvir, ver ou ler, fazem a montagem do mundo que conhecemos. Ou seja, o mundo é editado e é assim que ele chega a todos nós.
Esta edição – que nos mostra o mundo que conhecemos, o mundo a que temos acesso – obedece a interesses variados: econômicos, políticos, religiosos, estéticos, de valores, etc.
Vamos deixar bem claro: editar é construir uma realidade a partir de supressões ou acréscimos em um acontecimento. Ou, em muitos casos, apenas pelo destaque de uma parte em detrimento de outra. Ao editarmos a realidade, aumentamos um ponto, diminuímos outro, iluminamos aqui, escurecemos ali. Editar é reconfigurar alguma coisa, dando-lhe um novo significado, atendendo a determinado interesse, buscando um determinado objetivo, fazendo valer um determinado ponto de vista, assumindo uma determinada perspectiva.
Nesta perspectiva, segundo o ponto de vista que estou assumindo aqui, um documentário, assim como uma notícia ou uma reportagem, têm um aspecto de ficção, isto é, de construção e reconstrução da realidade.
No caso do cinema, que foi o nosso ponto de partida, a imagem que chega a nós como espectadores é a imagem tomada pela câmera e tem o ponto de vista de um autor, seja ele o roteirista, o diretor ou o produtor.
Quer dizer, um documentário é uma visão da realidade mas não é a realidade, não é toda a realidade, não é a realidade em todos os seus aspectos e em toda a sua complexidade. E não poderia ser diferente disso. Não somos deuses e não podemos ter acesso a todas as diferentes facetas da realidade. Pelo menos, não ao mesmo tempo.
Assim, é fundamental, para termos condições de conhecer melhor o mundo, que possamos desvendar os mecanismos usados em sua edição. Que mundo é esse que nos é mostrado? O que foi amplificado? O que não foi mostrado ou foi reduzido? Que interesses e que objetivos levaram a destacar este ponto de vista?
No caso dos meios de comunicação, entre eles o cinema, somos todos alunos. Eles são a fonte primeira que educa a todos os educadores: pais, professores, autores, etc. Por isso precisamos procurar entendê-los bem e saber ler criticamente o que eles nos mostram. Só assim poderemos trabalhar adequadamente estes meios em nossas atividades educacionais de modo a conseguirmos percorrer o caminho que vai do mundo que nos entregam pronto, editado, até a construção de um mundo em que todos possam desenvolver plenamente o seu potencial criativo e a sua capacidade de invenção (quer chamemos a isso de tornar-se sujeito, exercer a cidadania ou dar sentido à existência).
As possibilidades de reflexão e debate são múltiplas. Se ficarmos pensando em tudo que poderíamos discutir não começaremos nunca. É preciso tomar uma decisão, fazer uma escolha, mesmo sabendo que ao fazer determinada escolha estamos deixando de lado inúmeras outras possibilidades. Quantos mundos existem num olhar? Qunatos mundos cabem numa tela de cinema? Quantos outros mundos nos são sonegados pela mesmice do circuito comercial de cinema e de televisão?
Estas perguntas todas ao longo do texto apontam para a importância de um trabalho de reflexão sobre a educação e os meios de comunicação e provocam outras tantas indagações: que mundo estamos mostrando a nossas crianças? Nossas escolas e nossos professores e professoras facilitam (e estimulam) o acesso de seus alunos à diversidade de produção cultural existente no mundo? Que acesso tem nossos estudantes à multiplicidade de visões de mundo disponíveis no campo das artes e da cultura?
Neste contexto cabe destacar a importância de um trabalho como o que vem sendo realizado em nossa cidade já há seis anos pela Associação dos Amigos do Cinema, seja em suas sessões semanais das sextas-feiras – nas quais temos a oportunidade de assistir a produções de países como China, Irã, Índia, Taiwan, Argentina, Brasil e tantos outros – seja no seu projeto “A escola vai ao cinema”, que dá às escolas participantes a oportunidade de apresentar seus alunos a filmes que não passam nas salas comerciais nou na televisão e que não se encontram nas prateleiras das locadoras. Procure saber mais. Acesse o blogue http://amigosdocinema.blogspot.com e veja como funciona um dos mais tradicionais cineclubes do Rio Grande do Sul.

Caco Baptista é sociólogo, professor da Unisc e
presidente da Associação dos Amigos do Cinema de Santa Cruz do Sul.

Mamãe, coragem

Hoje é dia das mães. O que escrever no dia das mães? Ou melhor, o que escrever no dia das mães que não seja aquilo tudo que ano após ano a gente sempre lê no dia das mães? Por exemplo, que mãe só tem uma. Mas, neste início do terceiro milênio da era cristã, a família e os costumes sofreram tantas transformações que são muitos os filhos que têm duas mães (e, muitas vezes, dois pais). E de que mãe eu falo, da minha mãe ou das mães dos meus filhos?
E afinal, o que é ser mãe às portas do terceiro milênio? Ser mãe ainda é desdobrar o coração fibra por fibra? Ou, ao contrário, como já cantavam os Mutantes ao final dos anos 60, “ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração dos filhos”? Cazuza, o grande poeta do rock nacional, depois de detalhar as agruras de ser jovem na década de oitenta, cantava que “só as mães são felizes”.
Minha mãe, quando eu era um adolescente de 17 anos, costumava brincar assinando seus bilhetes para mim com as seguintes letras: “q.t.m.t.t.”. Ou seja, quem tem mãe tem tudo. Hoje, isto virou slogan de rede de televisão. Fazer o que, o tempo não para.
Na verdade, hoje como sempre, as mães continuam a se preocupar com os filhos, a não dormir de noite enquanto estes não chegam, a acordar mais cedo para fazer o café, a juntar as meias espalhadas pela sala, a ajudar nos temas, a conferir o boletim escolar, a consolar as dores, a vibrar junto nas conquistas. Realmente, q.t.m.t.t.
Olha, agora falando sério, o que importa neste dia das mães (e em todos os outros) é que este não seja o único dia em que o pai e os filhos acordem mais cedo para preparar o café e levá-lo na cama para a mãe. Que não seja só hoje que convidem a mãe para almoçar fora e lhe comprem uma rosa. Afinal, mãe é mãe todos os dias. Mesmo, e principalmente, naqueles dias que nos parece uma chata, reclamando da hora, do volume do som, do comprimento do cabelo (comprido demais) ou da saia (curta demais). Por isso, vamos cair na real e nos tocar que não é só a mãe dos outros que é legal (até porque é isso que os outros pensam da mãe da gente). Então, hoje e todos os outros dias, vamos sorrir e gritar bem alto: viva a minha mãe, vivam todas as mães!
E como dizia Torquato Neto, o grande poeta dos anos 70,

“mamãe mamãe não chore
a vida é assim mesmo
.....
mamãe mamãe não chore
eu quero eu posso eu fiz eu quis
mamãe seja feliz
mamãe mamãe não chore
não chore nunca mais não adianta
....
mamãe não chore, não tem jeito”
(mamãe, coragem)

Caco Baptista, filho da Maria, pai do Pedro (filho da Lee) e do Rodrigo (filho da Marisa).
Publicado no jornal da Escola Educar-se, 1999

Rotina e criatividade *

Na série de falas voltadas para a reflexão, quatro anos depois, sobre as leituras que foram fundamentais para a elaboração do novo projeto pedagógico da Escolinha de Arte em 2001, havíamos programado para hoje compartilhar com vocês alguns trechos da minha leitura de Humberto Maturana, cujas concepções sobre os fundamentos biológicos do conhecer e da aprendizagem, sobre a educação e sobre a centralidade do respeito, da criatividade, da liberdade e do amor na constituição do ser humano e da sociedade são elementos importantes do embasamento epistemológico do trabalho educativo que a Escolinha de Arte está a fazer.
Antes disso, porém, quero fazer referência a um interessante artigo de Eugênio Mussak na revista Vida Simples em que o autor articula a concepção freudiana da dualidade de nossos impulsos básicos com os últimos avanços das ciências da cognição e da biologia do cérebro para escrever sobre a possibilidade de mudar velhos hábitos a partir de pequenas mudanças no cotidiano feitas todos os dias e a cada dia e o quanto isso pode nos fazer mais felizes. A leitura desse artigo levou-me a retomar algumas reflexões incompletas sobre rotina e criatividade que vou tentar organizar seguindo o roteiro do artigo de Eugênio Mussak para que a gente possa conversar sobre o tema. Diz ele:
 O hábito de fazer as coisas de modo repetitivo e automático é explicado pelo desenvolvimento do cérebro humano.
 Cientistas dizem que a mente humana tem duas partes que se conflitam e se complementam.
 Uma destas partes faz a opção inconsciente pela estabilidade, por deixar tudo como está. Deseja economizar energia, pois para repor a energia gasta precisa buscar alimentos e isso nos expõe ao perigo de morrer. Então procura fazer o básico da sobrevivência, sempre igual.
 A outra parte, mais recente na evolução biológica do humano, busca a atividade, a mudança, o desenvolvimento pessoal.
 Estabilidade: conforto, segurança, estagnação – – fazer sempre igual, rotina
 Desenvolvimento: novidade, coragem, ousadia – – fazer diferente, criar
 A oposição entre segurança e aventura, curiosidade e cautela caracteriza o ser humano, que tem desejos e necessidades que se contrapõem.
 Esta oposição não é um conflito, mas uma dualidade (a condição de coexistência pacífica de princípios opostos: dia e noite, vida e morte, amor e ódio, emoção e razão ...).
Na vida cotidiana estes princípios opostos se manifestam na busca da rotina (por ser conhecida) e da estabilidade (por ser confortável) ao mesmo tempo que desejamos a aventura e a mudança (que alimentam a curiosidade e a emoção).
Freud, em correspondência com Einstein, explica os dois tipos de instintos humanos: o instinto erótico (que tende a preservar e a unir) e o instinto agressivo ou destrutivo (que tende a destruir e a matar), formulando teoricamente a oposição amor e ódio que caracterizaria a dualidade do ser humano. Este modelo dual permite explicar muitas ações humanas, sejam elas benéficas ou não, isto não está em questão agora (Freud não faz juízo de valor entre bem e mal, dizendo que ambos os instintos são essenciais para a existência dos fenômenos da vida). Mas é necessário não permitir que os instintos destrutivos imperem para atender o desejo de dominação. Para isso, diz Freud, o ideal seria transformar este desejo de dominação em um desejo de dominar um saber, tornando a civilização mais voltada para a cultura e o amor.
Freud se referia, neste texto, tanto à guerra quanto a coisas cotidianas, como o relacionamento entre os seres humanos, com suas diferenças e contradições. E principalmente à relação do ser humano consigo mesmo, em suas capacidades opostas, como construir e destruir, estagnar e progredir, querer ir e querer ficar, etc.
Esta dualidade constitutiva do ser humano às vezes é vivida como um conflito, e então pode gerar conflitos e sofrimento para as pessoas, especialmente quando os pólos da dualidade são julgados em termos éticos de certo/errado, bem e mal e se tenta suprimir um deles. Isto costuma ocorrer muito no processo de educação das crianças, tanto no meio das famílias como nas escolas, seja por falta de informação, pré-concepções equivocadas sobre criança e educação ou falta de conhecimento científico sobre o desenvolvimento biológico, psíquico e cognitivo do ser humano. Esta falta de compreensão da dualidade constitutiva do ser humano se expressa na valorização de rotinas repetitivas e rituais na educação das crianças, com a ênfase na repetição e na cópia.
Ao contrário disso, em nossa concepção aqui na Escolinha, é necessário perceber que precisamos tanto da segurança quanto da ousadia e que seremos tão mais saudáveis quanto maior for o equilíbrio entre essas duas prioridades.
É possível, então, rotina e criatividade?
Sim, claro. Possível e necessário. Necessário no processo de educação das crianças e necessário para o equilíbrio de cada ser humano.
Para desenvolver mais isso seria preciso agora aprofundar a discussão dos modelos científicos de funcionamento da mente e do sistema psíquico do ser humano, tanto no campo da epistemologia genética (Piaget) quanto da neurobiologia, das ciências cognitivas, da biologia do conhecer (Maturana) e das teorias sociopoiéticas sobre o sistema educativo (Luhmann). E a discussão científica exige uma terminologia própria, onde cada palavra tem trinta linhas de definição. Não precisam se assustar. Não vou fazer esta discussão aqui. Quero apenas explicitar que ela existe e está por detrás de cada palavra que estou dizendo aqui. Porém, penso que o mesmo tema pode ser tratado com muito mais beleza e concisão por meio da poesia, no caso a poesia da canção Cotidiano, de Chico Buarque:

Cotidiano
Chico Buarque
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor...

Podemos perceber o lado bom da rotina - a segurança, o conforto, a familiaridade – mas percebemos também a vontade de saltar fora, de deixar tudo de lado. Isso é o cotidiano: tanto a rotina quanto a aventura, tanto o tédio pela repetição quanto o medo da novidade.
Agora vamos trazer isso – a necessidade de repetição e a curiosidade pelo desconhecido – para a idade das nossas crianças. Sabendo que é na convivência com os seus adultos que a criança se educa (ao mesmo tempo que os adultos se educam) e que nessa convivência adultos e crianças fazem o mundo vivendo-o (como escreveu Maturana), nós adultos temos a responsabilidade de estimular nas crianças a curiosidade, a busca da aventura, o prazer da descoberta ao mesmo tempo que respeitamos e atendemos suas necessidades de segurança e estabilidade por meio de rotinas e recorrências. Não entender estas necessidades e desejos das crianças pode levar a uma convivência educativa que enfatiza a ruptura entre estabilidade e criatividade, conduzindo ao estabelecimento de normas rígidas, criação e dependência de rituais nos relacionamentos cotidianos, estagnação da curiosidade ou, ao contrário, levando à condutas irresponsáveis, concepções escapistas e recalcamento do princípio de realidade.
Se afirmamos que a criança se educa na convivência com os adultos, é preciso prestar atenção, então, nessa convivência. Uma característica importante da convivência educativa para a criança é a imitação, processo fundamental para a criança entender a realidade em que vive. Mas atenção, imitar não é copiar. Não se trata, na imitação, de uma cópia mecânica da ação do adulto ou de outra criança. Ao contrário, a imitação é uma ação simbólica da criança, através da qual, repetindo o ato do adulto, ela tenta apreender seu significado. Neste sentido a imitação é, na verdade, uma apropriação, mediada pela imaginação, daquilo que a criança quer compreender. Assim, a criança não imita qualquer ato, de forma mecânica, mas, ao imitar, seleciona aquilo que ela busca compreender no mundo adulto. Ao mesmo tempo, como nos lembra Cesar Coll, a imitação, além de ser um mecanismo de aprendizagem e desenvolvimento, é uma forma de expressão da subjetividade da criança.
Outra característica importante da relação que a criança estabelece com o mundo é a repetição. Como podemos observar olhando para nossas crianças, quando elas brincam ou realizam qualquer outra atividade que lhes dá prazer o principal sinal de sua satisfação é fazer de novo, imediatamente após o final da atividade. Como escreveu o Walter Benjamin (outro dos teóricos que nos orientaram na eleboração do projeto pedagógico), “sabemos que para a criança a repetição é a alma do jogo, nada alegra-a mais do que o mais uma vez ... e de fato toda experiência mais profunda deseja insaciavelmente até o final das coisas, repetição e retorno”. Para Benjamin, a repetição permite à criança compreender o mundo, experimentar suas emoções, elaborar suas experiências, refletir sobre o vivido. Os adultos fazem isso através da linguagem, narrando o que viveram. As crianças o fazem pela repetição do gesto ou da ação. Por isso, para elaborar e significar o vivido as crianças precisam ouvir sempre a mesma história, contada do mesmo jeito e com as mesmas palavras, rever os mesmos filmes, cantar as mesmas músicas e repetir exaustivamente jogos e brincadeiras. Até que, de repente, misteriosamente, ela se desinteressa daquilo que lhe despertava tanta emoção e a substitui pela repetição de uma nova atividade. Isso indica que as crianças repetem não apenas aquilo que lhes dá prazer, mas aquilo que ela quer experimentar e compreender. Nas palavras de Gouvea, “através da repetição a criança ordena suas emoções, disciplina seu mundo interno, dando-lhe logicidade”.
Estamos chegando ao final do tempo combinado e é preciso concluir mesmo sem esgotar o assunto para poder entabular agora uma conversa sobre tudo isso: o nosso cotidiano, os nossos hábitos, o significado e a importância da imitação e da repetição para a compreensão do mundo e, sobretudo, sobre a importância da convivência no processo educativo. Depois, se sobrar tempo, poderemos fazer a apresentação das leituras de Maturana como havíamos programado (ou a deixamos para outra oportunidade, dependendo da hora).

Referências:
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Summus, 1984.
COLL, Cesar. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999, vol. 1.
GOUVEA, Maria Cristina Soares de. “Infância, sociedade e cultura”. In: CARVALHO, A., SALLES, F. e GUIMARÃES, M. (orgs.) Desenvolvimento e aprendizagem. Belo Horizonte: EdUFMG, 2003, p. 13-29.
MUSSAK, Eugênio. “Só para variar”. Revista Vida Simples, São Paulo: Ed. Abril, julho de 2004.

* Palestra na Escolinha de Arte, para famílias e educadoras.
novembro 2005

segunda-feira, 9 de março de 2009

Referenciais teóricos para a análise da Universidade como organização *

1 Da máquina burocrática à organização de especialistas: estrutura, cultura e processo decisório nas universidades.

A análise da organização universitária costuma ter como ponto de partida o conceito de burocracia, tal como foi definido por Max Weber em seus estudos sobre a racionalização do mundo e as formas de dominação legítima. Através de sua análise da dominação, Weber desenvolve uma sociologia das organizações na qual a burocracia é concebida como o meio mais racional que pode assumir uma organização administrativa. O tipo ideal de organização burocrática apresentado por Weber tem como pressuposto a dominação fundamentada na autoridade racional-legal, caracterizada pela obediência a normas impessoais e objetivamente instituídas e pela autoridade devida ao cargo e não à pessoa. Por esta definição, a burocracia é uma forma de organização administrativa baseada na dominação racional-legal e caracterizada por divisão do trabalho, padronização das atividades, existência de hierarquia administrativa e utilização de critérios impessoais. Há forte ênfase na centralização, na obediência à regras objetivamente estatuídas e formalizadas em estatutos e regulamentos e na autoridade devida ao cargo e não à pessoa que o ocupa. Sinteticamente, os elementos que caracterizam uma organização burocrática são: formalismo, impessoalidade, profissionalismo, racionalismo, hierarquia1.

As organizações universitárias não correspondem facilmente a esta definição: não há padronização das atividades, nem supervisão direta sobre os processos de trabalho, nem regras de operação altamente detalhadas; não há consenso interno sobre os objetivos nem sobre o modus operandi; a hierarquia não é um fator determinante; grande parte das interações são de caráter informal; a racionalidade dominante não é econômica, mas política. Segundo Siena, apesar de ser possível aplicar o modelo weberiano para análise das universidades, uma vez que elas são organizações instituídas pelo Estado, possuem hierarquia formal, canais de comunicação, relações de autoridade, regras, processo de tomada de decisão que é, na maioria das vezes, burocrático quando se trata de decisões de rotina, esse modelo não diz muito sobre o poder baseado em ameaças ilegítimas, na 'expertise' e na influência, bem como não explica o processo pelo qual as políticas são estabelecidas e como agem os grupos, dentro da universidade, para forçar decisões que favoreçam seus interesses (Siena, 1993: 25).

Contudo, como Weber deixa claro, sua definição trata de um tipo puro, ou seja, na realidade as dimensões de formalização, complexidade e centralização burocráticas variam tanto de uma organização para outra quanto dentro de uma mesma organização. Ao finalizar a apresentação do que chamou de "princípios estruturais especialmente importantes" da organização, Weber lembra que não se deve perder de vista o fato da realidade comportar a continuidade e a interação mútua de princípios de organização heterogêneos, destacando que sus tipos 'puros' deberán ser considerados como casos límites indispensables y en especial valiosos para el análisis, casos entre los cuales la realidad histórica, manifestada casi siempre en formas mixtas, se ha movido y aún se mueve (Weber, 1983: 752).

Portanto, ainda que o modelo burocrático não dê conta da totalidade dos aspectos da organização universitária, podem ser verificadas várias características burocráticas presentes na universidade (coordenação por divisão de trabalho, atividades padronizadas, regras e regulamentos, critérios impessoais). Esta constatação, que fortalece a idéia de que alguma forma específica de burocracia possa existir na universidade, é formulada com muita felicidade por Hardy (1990), que descreve a universidade como um tipo específico de organização em que
both the professional and bureaucratic features are to be found. (...) Universities thus typically include a decentralized but bureaucratic academic community, side by side a typically bureaucratized nonacademic community, hence the term professional bureaucracy (Hardy, 1990:22).

A expressão burocracia profissional foi cunhada por Henry Mintzberg (Hardy, 1990, Beshears, 2002, Guerra, 1999), que partindo do tipo ideal weberiano vai sugerir uma tipologia de configurações estruturais para as organizações: estrutura simples, máquina burocrática, burocracia profissional, forma divisional e adhocracia (Leitão,1989:33)2. Trabalhando com esta tipologia, a maioria dos autores que se dedica a estudar a universidade como organização passou a representar a sua forma estrutural através do modelo da burocracia profissional, cujas caraterísticas são poder descentralizado, lealdade às normas da profissão e não da organização e elevada complexidade. Devido à grande variedade de áreas de conhecimento com que trabalham os seus profissionais, estas organizações possuem grande diferenciação horizontal e dispersão de poder, o que torna difíceis a coordenação e o controle das decisões, que são tomadas de forma descentralizada.

As burocracias profissionais são estudadas por Amitai Etzioni (1980) a partir da noção de "organizações especializadas", que se caracterizam pelos objetivos que procuram atingir, por ter grande proporção de especialistas com grande preparo profissional entre seus funcionários e pela relação de autoridade entre especialistas e não-especialistas, com aqueles tendo maior autoridade nas questões relativas aos objetivos e finalidades da organização. Etzioni aponta como principais exemplos de organizações desse tipo aquelas voltadas para a produção e aplicação do conhecimento - dentre as quais as universidades seriam um dos mais complexos casos de "organização especializada pura" (Etzioni, 1980:135)3 - e descreve com muita precisão a questão da direção de uma organização especializada como sendo "um caso típico do conflito especializado de papéis" entre "especialistas" e "administradores", entre a manutenção dos objetivos da organização e as necessidades organizacionais que não se ligam ao objetivo principal mas garantem a integração e continuidade da organização (Etzioni,1980:130), destacando a incompatibilidade entre a autoridade administrativa (burocrática, baseada no conhecimento técnico e legal, na posição formal, na hierarquia, no controle organizacional) e a autoridade de especialista (baseada no conhecimento, na autonomia, na lealdade à profissão e na supervisão pelos colegas). E, conclui Etzioni, como grande parte do poder nas universidades é exercido pelos profissionais (professores e pesquisadores), este tipo de organização exige uma estrutura e um processo decisório complexos e descentralizados.

Apesar dos inegáveis progressos para a análise da universidade como organização trazidos pelas contribuições de Mintzberg (burocracia profissional) e de Etzioni (organização de especialistas), revelando uma organização em que são encontrados tanto aspectos burocráticos como de colegialidade entre profissionais, esta maneira de estudar a universidade ainda mantém uma certa rigidez de análise, pois o que se procura verificar é se as unidades da universidade caracterizam-se por um por outro aspecto, ambos vistos como excludentes, como se fossem duas realidades a serem examinadas. Isto conduz a erros de percepção da realidade institucional, pois não se trata de duas realidades excludentes e sim de diferentes graus de centralização/descentralização. Além disso, como adverte Hardy, os trabalhos sob esta perspectiva concentram-se sobre a colegialidade ou a burocracia como aspectos relativos exclusivamente à estrutura formal, "in terms of which levels exert influence over decision outcomes, and the research design does not allow the authors to show that influence was exerted during decision making" (Hardy, 1990:23).

Além disso, concentrados nos modelos de estrutura e de tomada de decisão formulados por Mintzberg, os pesquisadores costumam negligenciar outros modelos que poderiam ser utilizados para analisar tanto a estrutura como o processo decisório na universidade e não dão conta da diversidade existente (No Anexo A pode-se ver uma tabela, adaptada por Hardy (1990:38-39), na qual são comparadas as principais configurações aplicadas ao estudo da universidade). Mesmo quando foca os dois aspectos, a maioria dos estudos trata-os separadamente e preocupa-se mais em descrever os arranjos da organização formal da universidade e como ela desenha o seu organograma, do que em saber como ela efetivamente funciona em sua complexidade de estruturas e processos.

A elevada especialização de tarefas, a estrutura descentralizada, a dispersão de poder entre vários níveis e unidades, o controle pelos pares, a coordenação baseada na padronização das capacidades dos profissionais obtida na formação acadêmica e a forte ênfase destes na sua autonomia e na lealdade ao departamento ou à área profissional, produzem uma tamanha complexidade estrutural na universidade - com uma grande variedade de órgãos e unidades que funcionam como centros de iniciativa e de decisão e a coexistência de uma estrutura de autoridade administrativa com outra baseada no conhecimento especializado dos profissionais - que torna difícil a coordenação e o controle das decisões, prejudica o fluxo de informações e dificulta a adoção de procedimentos de gestão profissionalizada.

Esta complexidade tem levado diversos autores a propor que a análise da universidade como organização exige que os aspectos da estrutura organizacional, dos processos decisórios e da cultura organizacional sejam examinados articuladamente. Entre estes autores, além da própria Hardy (1990) - que examina a relação entre a elaboração de estratégias e as variáveis estruturais e contextuais, tendo como ponto de partida o conceito de configuração, que exige o exame de uma variedade de elementos de estratégia, estrutura e ambiente - destaco Leitão - que examina as evidências das relações entre estrutura, cultura e desempenho organizacional tendo como premissas que a "diferentes processos decisórios correspondem diferentes estruturas organizacionais" (Leitão, 1989:31) e que a análise do processo decisório só é completa e produtiva quando as dimensões estrutural e cultural são tratadas de forma integrada - e Siena (1993) - que compartilha esta visão estruturando seu estudo sobre a racionalidade (fator cultural) na lógica de ação (processo decisório) dos dirigentes universitários a partir da análise da literatura sobre modelos organizacionais (fator estrutural).

Para Hardy (1990:33-5), a burocracia profissional caracteriza-se por descentralização do poder, desenvolvimento profissional como meta, lealdade a normas profissionais, controle via socialização, mudanças estimuladas pelos profissionais, e pode ou não ter ênfase política nas decisões. Para esta autora é importante destacar que a burocracia profissional, por suas características, apresenta dificuldades para fazer frente às necessidades de inovação e adaptação a ambientes dinâmicos.

Com efeito, as características da burocracia profissional - coordenação pela estandardização de habilidades e normas profissionais dos especialistas, controle dos processos de trabalho pelos especialistas e relativa autonomia destes em relação a seus colegas e à própria organização, ou seja, "the power of expertise" (Beshears, 2002:6) - tornam difícil a mudança, que não se dá pela substituição dos administradores (que poderia ser mais rápida e drástica), com os novos executivos assumindo para anunciar reformas fundamentais, mas por uma lenta, gradual e pouco provável mudança dos próprios especialistas: "changing who can enter the profession, what they learn in its professional schools (...) and thereafter how willing they are to upgrade their skills" (Beshears, 2002:6). As estratégias de uma organização deste tipo não são nunca resultado de decisões estratégicas e da proatividade de seus dirigentes ou da própria organização e sim o resultado do efeito cumulativo dos projetos e iniciativas que os seus membros estão dispostos e aptos a realizar. Em última instância, assim como a máquina burocrática, também a burocracia profissional é uma estrutura inflexível, apta para fazer bem os seus padrões de desempenho mas inapta para adaptar-se à produção de novos padrões. Ou seja, a burocracia profissional tende para a padronização e não para a inovação, enfrentando fortes dificuldades para adaptar-se a ambientes dinâmicos e imprevisíveis.

Também para Leitão (1989), a principal característica da burocracia profissional é sua elevada complexidade e pouca agilidade. Nesta configuração organizacional, diz Leitão, a coordenação está baseada mais na padronização das capacidades do pessoal operacional (os especialistas) do que na padronização das atividades e processos de trabalho. É a padronização das capacidades de professores e pesquisadores, adquirida em sua formação acadêmica, que permite uma relativa independência de cada especialista, dispensa maior supervisão da gerência intermediária (chefias de departamento, direções de faculdade) e gera uma estrutura descentralizada (Leitão, 1989:33-4). Devido à grande variedade de áreas de conhecimento com que trabalham os seus profissionais e às "percepções paroquiais das diversas unidades de especialistas (departamentos)", estas organizações possuem grande diferenciação horizontal e dispersão de poder, o que torna difíceis a coordenação e o controle das decisões e requer "um processo decisório mais interativo e político, ao invés de centralizado" (Leitão, 1989:35).

O caráter marcadamente político do processo decisório nas universidades - em que as decisões são antes o resultado de negociações e ajustamento mútuo entre diferentes grupos e interesses do que uma ação racional, coerente com objetivos claramente definidos e baseada em cálculos e informações precisas - faz com que vários autores refiram-se à sua configuração estrutural como uma "anarquia organizada", na qual as decisões são tomadas de forma aleatória ou acidental (o modelo do processo decisório como "lata de lixo")4. Hardy (1990:27), porém, sugere que se conceba a "anarquia organizada" como uma forma extrema de burocracia profissional, na qual as decisões são tomadas de forma aleatória e casuística em função de uma estrutura demasiado complexa, que impede os atores envolvidos de influenciar os eventos de forma consistente.

Para Rodrigues, o centro da lógica de ação na universidade é mesmo a dimensão política, de tal forma que a noção de sucesso de uma decisão é politicamente definida. Como conseqüência da centralidade da lógica política, diz ela, todas as decisões dependem de um ajustamento mútuo entre os participantes, uma vez que são influenciadas por vários interesses, configurando um "processo decisório fragmentado ou descentralizado, no qual vários participantes afetam uns aos outros" (Rodrigues, 1985:71). Além da diversidade de interesses entre os diversos grupos que compõem a universidade, Rodrigues chama a atenção para a diversidade de concepções sobre o que sejam a instituição e os seus objetivos como um fator determinante da ênfase política nas organizações universitárias. Comparando decisões empresariais, que enfatizam a racionalidade econômica, com decisões tomadas em universidades inglesas, Rodrigues conclui que nas empresas o processo decisório é menos definido como atividade política e de conflito não porque os administradores de empresas sejam mais racionais e menos políticos, mas porque existe um acordo implícito nessas organizações quanto ao objetivo maximização de lucros, e o consenso quanto aos objetivos nega necessidade do uso do poder e da atividade política (Rodrigues, 1985:72-3).

Já na universidade - "uma instituição singular, dividida em várias subculturas, caracterizada pela diversidade e ambivalência de objetivos" (Rodrigues, 1985:65) - o processo decisório baseia-se mais em interesses paroquiais do que em valores econômicos ou organizacionais. Para esta autora, numa organização em que o poder é disperso, os objetivos são heterogêneos e não há consistência entre estes e as formas de alcançá-los, a tomada de decisões e sua implementação depende basicamente da ação política, a racionalidade emerge da interação "e serve muito mais para legitimar a ação passada do que para guiar o processo decisório" (Rodrigues, 1985:73).

Em decorrência da complexidade da instituição universitária, fragmentada em diferentes grupos e segmentos, pode-se verificar, ao lado de uma cultura comum a todos os seus membros - que caracteriza cada instituição e a distingue das demais -, a coexistência de diversas subculturas profissionais ou departamentais, cada uma com os seus próprios valores e significados. Por cultura organizacional entende-se aqui o conjunto de crenças e significados que sustentam e explicam as práticas organizacionais e que serve como fundamento para a socialização de seus membros, independentemente das subculturas grupais. Entre os fatores decorrentes da cultura organizacional que afetam os processos decisórios na universidade destacam-se o estilo de liderança voltado para o voluntarismo, a prática rotineira de "apagar incêndios", o caráter amadorístico da gestão e o incrementalismo, todos valorizando a improvisação, a coerência com o passado e as pequenas correções de curso ao sabor dos acontecimentos.

Esta característica cultural fortalece e é fortalecida pela lógica política das tomadas de decisão e desempenha um importante papel na definição da identidade institucional. Considerando os elementos característicos do processo político presentes nas tomadas de decisão na universidade - participação fluida (os indivíduos não dedicam muito tempo a um problema, ficando a decisão nas mãos de pequenos grupos mais persistentes); fragmentação em grupos de interesse com diferentes valores e objetivos; a visão do conflito como natural e mesmo salutar para a vida acadêmica; e a limitação da autoridade pela pressão dos diferentes grupos de interesse, transformando a decisão em compromissos negociados entre grupos competidores – podemos arrolar entre as vantagens da lógica política o fato de que esta permite que se tome decisões mesmo na ausência de objetivos claros, simplifica os processos de influência e protege a organização contra rupturas. Por outro lado, é preciso destacar como desvantagem deste viés o risco de que estes processos sejam utilizados em situações em que outros processos seriam mais efetivos, o fato de que alguns grupos busquem o controle das informações como um recurso de poder, o fato de que uma considerável parte do tempo da organização passa a ser reservada para atividades políticas, muitas vezes às expensas da atividade científica, e o risco de que as decisões e sua implementação, mais do que uma ação racional, tornem-se o resultado de lutas e negociações entre grupos de interesse que visam à aquisição e ao controle do poder.

Pode-se perceber, portanto, que os modelos de estrutura organizacional e de processo decisório se apresentam em íntima relação, muitas vezes confundindo-se uns com os outros. Isto tem a ver com a natureza complexa das organizações, em que cultura, estratégia e estrutura estão fortemente relacionadas. Nas universidades, especificamente, as decisões são objeto de deliberação em órgãos colegiados de diferentes níveis, ficando explícita a inter-relação entre cultura, tomada de decisão e estrutura.

É preciso destacar, a esta altura, que o uso generalizador da expressão “a universidade”, nesta seção e na seguinte, não pressupõe o desconhecimento da complexidade do sistema de ensino superior brasileiro, um sistema bastante diversificado, com uma grande variedade de instituições (universidades, centros universitários, faculdades integradas, faculdades isoladas) e de dependências administrativas (federal, estadual, municipal, particular - esta última dividida ainda em confessionais, empresariais e comunitárias).

O sistema de ensino superior brasileiro é marcado pela complexidade e diferenciação acadêmica, organizacional e administrativa entre as distintas instituições que o integram, e permite observar vários tipos de diferenciações internas: público X privado; universidade X centros universitários; universidade de pesquisa X universidade de ensino. E dentro de cada um dos subsistemas público e privado seria possível fazer outras tantas diferenciações. O sistema público, por exemplo, é composto por universidades federais, estaduais e municipais. Do mesmo modo, o sistema privado abriga desde universidades geridas de forma propriamente privada, sob padrões empresariais e com fins lucrativos, até universidades confessionais - geralmente filantrópicas e/ou sem fins lucrativos, mais preocupadas com a reprodução dos esquemas de pensamento, de percepção e de ação que sustentam suas convicções religiosas - e universidades comunitárias, que além de serem filantrópicas e sem fins lucrativos, "não tem dono" - isto é, são mantidas por fundações ou associações civis, organizações não-governamentais, cooperativas de professores, etc. - e tendem a diferenciar-se em um subsistema específico, o das universidades públicas não-estatais (voltarei a esse ponto mais adiante, na seção 6.3, quando apresentar o contexto, estrutura e funcionamento da UNISC) .

Este mesmo tipo de diferenciações pode ser feito também na observação dos aspectos político-organizacionais e de gestão das universidades, onde seria possível estabelecer dois grupos de universidades: as organizações de especialistas, descentralizadas e onde se faz política – composto pela universidades públicas e pelas comunitárias – e as organizações verticalizadas – composto pelas universidades empresariais e pelas confessionais (que tem administração verticalizada e gestão acadêmica descentralizada). É preciso deixar claro que estamos trabalhando com o primeiro destes dois grupos de instituições, o das organizações descentralizadas, de sorte que muitas das nossas afirmações não se aplicam ou se aplicam apenas parcialmente às universidades do segundo grupo. Mesmo em relação ao primeiro grupo, muito do que se aplica às comunitárias não é inteiramente aplicável às públicas federais e estaduais. Vale, portanto, repetir a advertência de Max Weber sobre a utilidade de tipos puros com que iniciamos o capítulo: a realidade histórica manifesta-se quase sempre em formas mistas e comporta a continuidade e a interação de princípios de organização heterogêneos.


2 Planejamento e gestão estratégica nas universidades

A complexidade organizacional típica das organizações de especialistas, somada ao amadorismo administrativo dos seus dirigentes5, tem dificultado a definição dos objetivos e atribuições específicas das universidades, bem como de suas atividades e procedimentos. E sem definições claras sobre isto torna-se muito difícil definir a estrutura, os órgãos de apoio e os níveis de gerenciamento necessários para administrar a universidade de forma a torná-la produtiva, eficaz e socialmente responsável. A questão dos objetivos institucionais é um ponto fundamental da discussão sobre o processo decisório na organização universitária. Com efeito, como gerir uma instituição cuja característica principal é ter objetivos difusos, múltiplos, ambíguos, conflitivos, incongruentes? E como tomar decisões numa organização onde não existe consenso nem quanto aos seus objetivos nem quanto às suas funções ou à sua natureza institucional?

Para superar estas dificuldades e fazer face aos desafios colocados pelas rápidas e profundas transformações da sociedade é crescente o número de universidades que vem lançando mão das técnicas e metodologias do planejamento estratégico para desenvolver um bom ajustamento com o ambiente em que operam.

Entendido o planejamento como o exercício sistemático da antecipação, ou seja, a prospecção do futuro, a definição de metas e objetivos institucionais e a análise dos meios para alcançá-los, torna-se evidente a importância do planejamento para que as organizações sobrevivam e se desenvolvam, atingindo seus objetivos e cumprindo a sua missão numa época de tantas e tão rápidas mudanças.

As universidades não são exceção. Mesmo sendo um tipo especial de organização - caracterizadas por terem objetivos difusos e pouco consensuais, processo decisório complexo, produto de difícil mensuração, instrumentos de avaliação pouco sofisticados, ausência de padrões de desempenho e com frouxa vinculação entre as unidades - as universidades, para sobreviverem nestes tempos de rápidas transformações ambientais e de competitividade crescente, precisam dedicar grande ênfase ao planejamento.

Como um processo cuja preocupação central "é desenvolver um bom ajustamento entre as atividades da organização e as exigências do ambiente que a cerca" (Baldridge, s.d.: 10-11), o planejamento estratégico exige um acurado diagnóstico da organização e do seu ambiente operacional para a definição de metas e premissas de desenvolvimento. O processo exige a participação de todos, determinando que os pressupostos, objetivos e metas sejam estabelecidos pela alta administração e que o detalhamento dos planos táticos e operacionais tenha origem nos níveis hierárquicos inferiores. Ou seja, trata-se de um processo altamente centralizado e dependente da atuação da administração superior, pressupondo uma estrutura piramidal fortemente hierarquizada.

Kotler e Murphy (s.d.) apresentam o planejamento estratégico como o tipo de planejamento mais apropriado para o futuro e o definem como "o processo de desenvolvimento e manutenção de uma adaptação estratégica entre a organização e suas mudanças de oportunidade de mercado" (Kotler e Murphy, s.d.:3). Segundo eles, este processo é seqüencial e deve ser completado a cada nível principal da organização, "sendo as metas e premissas definidas pela alta administração descendo a hierarquia; os planos detalhados se originam nos escalões inferiores no sentido ascendente" (Kotler e Murphy, s.d.: 3-4).

No artigo citado os autores delineiam um modelo para se obter dos tomadores de decisão no ensino superior uma postura de planejamento estratégico sistemática e voltada para o mercado. Neste modelo - que coincide, em seus traços gerais com os modelos propostos por Baldridge (s.d.), Meyer (1988, 1991) e Keller (1993) - Kotler e Murphy destacam que além dos aspectos internos da organização, como tradição, valores e aspirações, pontos fortes e fracos (tanto acadêmicos como financeiros e administrativos), habilidades e prioridades das lideranças, é fundamental, para a elaboração de uma estratégia para a universidade, dedicar um cuidadoso olhar para o ambiente externo, verificando as tendências da sociedade e as ameaças ou oportunidades que elas encerram, as preferências, direções e percepções do mercado e as ameaças ou oportunidades colocadas pela situação da competição. Ao final de todo o processo o que se espera como produto não é um plano detalhado, carregado das melhores intenções e sem conseqüências efetivas sobre a vida da organização, mas sim um conjunto de decisões críticas.

Todos os autores citados procuram enfatizar as diferenças entre o planejamento estratégico e o planejamento tradicional de longo prazo: Kotler e Murphy concluem seu artigo destacando que o planejamento estratégico "volta-se para os tomadores de decisão no ensino superior" (s.d.: 19); Baldridge destaca a tomada de decisões como o principal objetivo do planejamento estratégico: "o objetivo chave do planejamento estratégico é um fluxo de decisões sábias e não um plano ou um documento, encadernado num volume, para ser esquecido" (s.d.: 28); Meyer enfatiza que se trata de um instrumento de gestão, orientado para "a tomada de decisões estratégicas de forma a proporcionar clareza e direção à organização" (Meyer, 1991:139), e Keller (1993) afirma que é importante entender que o planejamento estratégico
"It is not the production of a blueprint. The idea is (...) to get all the key people thinking innovatively and acting strategically, with the future in mind. Strategic planning involves continuous adjustments to shifting conditions, with a central strategy in mind" (Keller, 1993:140).

Ainda conforme Keller, o planejamento estratégico na universidade olha para o exterior da instituição e concentra-se em manter a instituição atualizada com as transformações do ambiente; reconhece que o ensino superior está sujeito às condições do mercado e a uma competição crescentemente forte; concentra-se sobre decisões e não sobre planos, análises, previsões e metas; é um misto de análise econômica racional, avaliação política e interação psicológica; é participativo e altamente tolerante a controvérsias e faz com que a universidade e seus líderes tenham uma postura ativa a respeito de sua posição na história (Keller, 1993: 143-63).

Por fim, é importante destacar que, para todos os autores, a ênfase não está no processo de planejamento mas no processo de tomada de decisões, naquilo que Keller (1993) chama de "academic strategic decision making" e que Meyer (1991) chama de "gestão estratégica": um processo continuado de tomada de decisões estratégicas, voltado tanto para o interior como para o exterior da organização, com o objetivo de promover um fluxo de decisões que garantam a sobrevivência e o desenvolvimento da organização frente a um ambiente dinâmico e turbulento.

Mantendo-se na perspectiva do planejamento estratégico, mas ciente das rápidas e profundas transformações das sociedades contemporâneas e das dificuldades apresentadas pelas universidades para adaptarem-se a elas, Pierre Cazalis (2002) propõe que se adote a "improvisação estratégica", um modelo de gestão que seria capaz de “reinventar a universidade”. Baseada na utilização permanente das ferramentas tradicionais do planejamento estratégico, não para fazer planos nem tomar decisões, mas para observar o ambiente e "administrar" o futuro, a improvisação estratégica, conforme Cazalis, permitiria projetar cenários e redesenhar a universidade de acordo com as modificações ambientais, numa espécie de numa espécie de planejamento contínuo e reinvenção permanente.

Contudo, a complexidade estrutural da organização universitária, a lealdade dos especialistas à sua profissão em detrimento das normas da organização e a diversidade de interesses das diferentes unidades e dos diferentes grupos profissionais que se organizam nestas unidades acentuam o caráter político da tomada de decisões na universidade e provocam uma dispersão do poder, conduzindo a um processo decisório descentralizado que apresenta diversas dificuldades para a efetiva implementação das decisões e é um sério empecilho para o sucesso de qualquer plano ou estratégia definido de forma centralizada ou imposto desde a administração superior. Podemos perceber, portanto, uma certa incompatibilidade entre o planejamento estratégico e a realidade da vida universitária, especialmente naquelas instituições que procuram estimular a participação democrática e a descentralização administrativa e decisória.

Na perspectiva da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos desenvolvida por Niklas Luhmann (cujos fundamentos serão abordados no próximo capítulo) esta incompatibilidade é bastante profunda e reside no quadro de referências que os teóricos do planejamento estratégico utilizam para pensar a universidade como organização. Mesmo quando utiliza a teoria de sistemas em sua abordagem esta perspectiva trabalha com a noção de sistemas abertos e concebe a universidade como uma máquina trivial. Já a abordagem segundo a teoria de Luhmann trabalha com a noção de sistemas auto-referenciais operacionalmente fechados e com a distinção entre máquinas triviais e máquinas não-triviais.

Enquanto sistemas abertos podem ser definidos como aqueles que se mantém funcionando através de trocas com o ambiente, sempre transformando inputs em outputs da mesma maneira, os sistemas auto-referenciais são "sistemas que se auto-organizam, que constróem e alteram suas próprias estruturas com suas próprias operações " (Luhmann, 1997a: 40).

A diferença de abordagem fica mais clara ainda quando acompanhamos a distinção entre máquinas triviais e máquinas não-triviais que Luhmann vai buscar em Von Foerster. No contexto da cibernética de Von Foerster, máquina significa apenas regra de transformação, podendo tanto ser cérebros como aparelhos mecânicos ou cálculos matemáticos (Luhmann, 1997b:51). Enquanto as máquinas triviais são confiáveis e operam sempre de forma previsível, as máquinas não-triviais têm humor instável e não são confiáveis:

"Máquinas triviais transformam, sempre da mesma maneira, inputs em outputs. Se o input é repetido, obtém-se o mesmo output - ou há um erro e a máquina precisa ir para o conserto." (Luhmann, 1997b: 51).


"Máquinas não triviais são máquinas auto-referenciais. Elas reagem, sempre, também à sua própria situação, a qual, por sua vez, é o resultado de suas próprias operações anteriores. Dito de outro modo, trata-se de máquinas históricas que, a cada operação, se transformam numa outra máquina. Essas máquinas são notoriamente inconfiáveis, já que, ao mesmo estímulo, de acordo com sua condição, podem produzir reações diferentes." (Luhmann, 1997c: 64)



3 A teoria dos sistemas sociais auto-referenciais

Sem nenhuma dúvida, a reinvenção das suas funções, estruturas e processos constitui condição fundamental para melhorar a qualidade e aumentar a pertinência social das atividades desenvolvidas pelas universidades e torná-las competitivas, garantindo assim a sua sobrevivência a longo prazo. Desse modo, faz-se necessário "reinventar" o modo de perceber a universidade, alcançando uma perspectiva de observação que supere as deficiências das perspectivas apresentadas até aqui, que priorizam alguns aspectos e dimensões da organização, mesmo que para tentar integrá-los, e continuam a percebê-la como devendo ser uma coleção de escolas, cursos e departamentos organizados numa forma piramidal e comunicando-se por canais de subordinação hierárquica.

No meu entendimento, a possibilidade de obter uma resposta satisfatória sobre a melhor configuração institucional para atender ao objetivo de otimizar o funcionamento dos processos de governo e tomada de decisões na universidade depende da percepção da instituição como uma complexa rede cujos nós estão inter-relacionados e em constante interação com o meio externo através de processos comunicacionais específicos e característicos.

Essa percepção da complexidade das organizações só se torna possível com a incorporação, pela análise sociológica, do conceito de sistemas auto-referenciais operacionalmente fechados. Segundo o conceito de autopoiése, desenvolvido originalmente na biologia por Humberto Maturana e Francisco Varela (1995), os sistemas autopoiéticos são sistemas que, para desempenhar as suas funções, criam seus próprios elementos e sua própria estrutura interna segundo suas próprias especificações, não sendo possível determinar a sua estrutura a partir do exterior do sistema. Isto caracterizaria, segundo Maturana e Varela, os sistemas vivos, que seriam, portanto, auto-referenciais, operacionalmente fechados e orientados por premissas internamente determinadas. Em decorrência, cada sistema vivo é, para si, o centro do universo e irá interagir com o ambiente de acordo com uma lógica interna que prioriza a afirmação de sua identidade (diferenciação sistema/ambiente). Portanto, quando um sistema vivo troca informações com seu ambiente estas informações terão para o sistema um significado próprio, não necessariamente idêntico ao que têm para um observador externo ao sistema. É importante ressaltar que a auto-referência e o fechamento operacional não implicam o isolamento do sistema. Ao contrário, as fronteiras do sistema indicam intensa comunicação entre sistema e ambiente. O que caracteriza o sistema operacionalmente fechado não é ausência de comunicação com o ambiente e demais sistemas, mas sim o fato de que, no processo de comunicação nenhum dos dois lados tem qualquer ingerência sobre como seu estímulo será interpretado e utilizado pelo receptor. E nem se o será.

Existe um importante debate sobre a legitimidade ou não da utilização da noção de autopoiése fora dos limites da descrição biológica dos seres vivos, mas é crescente o número de trabalhos atestando os bons resultados do uso desta noção em diferentes campos do saber, com aplicações bem sucedidas na sociologia da comunicação, na teoria jurídica, na teoria literária e nas corporações empresariais. Em várias destas aplicações as idéias de Niklas Luhmann são referidas.

Luhmann transporta o conceito de autopoiése para a análise dos sistemas sociais: diz que os sistemas sociais são sistemas fechados e, em sendo fechados, precisam ser autopoiéticos, sistemas que se auto-constróem e criam sua própria estrutura, processando (ou deixando de processar) as informações oriundas do ambiente de acordo com a lógica da sua estrutura interna e do seu código operacional, independente da intenção ou da estrutura do estímulo. Luhmann afirma ainda que a própria autopoiése irá forçar a diferenciação do sistema e o aumento da sua complexidade como uma necessidade para diminuir a complexidade do ambiente ou ao menos poder lidar com ela.

Esta perspectiva permite pensar em uma nova ciência das organizações, a ciência das organizações auto-organizantes, organizações que reconhecem a inevitabilidade da existência de contradições, ambigüidades e conflitos e que procuram utilizá-los em seu proveito, como fonte de criatividade e aprendizado. Organizações que buscam a atualização permanente de sua identidade, em consonância com as transformações em seu ambiente, fazendo uso da criatividade e da inovação para aprimorar seus estoques de conhecimento. São, portanto, organizações em que o alto grau de diferenciação de seus elementos constituintes não impede a existência de uma intensa comunicação interna que garante o seu funcionamento e fortalece a identidade organizacional.

Considerando a complexidade desta perspectiva e a sua importância para a análise organizacional da universidade, ela será abordada em um capítulo separado, no qual faço um apanhado da concepção de Luhmann sobre os sistemas sociais como sistemas autopoiéticos e avanço uma tentativa de aplicar seus estudos à universidade, entendendo esta como um sistema social cuja operação fundamental se dá pela constituição de redes de conversações acadêmico-científicas.


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*Texto adaptado de capítulo de disseração de mestrado em Ciências Sociais defendida na PUCRS em 2003
** Professor do Departamento de Ciências Humanas. Sociólogo, mestre em ciências sociais, doutorando em sociologia. Professor na Fisc/Unisc desde 1986. Foi chefe do Depto de Ciências Humanas (1991-1993, 1996-1997). Foi pró-reitor de planejamento e desenvolvimento institucional (1998-2002). Coordenou o Programa de Avaliação Institucional da Unisc (2000-2002). Coordenou o grupo de trabalho do COMUNG rersponsável pela elaboração do projeto de educação a distância denominado UCERGS – Universidade Comunitária do Estado do Rio Grande do Sul (2000-2001).