quarta-feira, 26 de maio de 2010

É possível conhecer o conhecimento? - Resenha do livro O método 3. O conhecimento do conhecimento, de Edgar Morin

É possível conhecer o conhecimento? Do dilema de Pascal à complexidade: fundamentos antropológicos de um conhecimento sem fundamento.

Resenha do livro O método 3. O conhecimento do conhecimento, de Edgar Morin.



“Sendo todas as coisas causadas e causantes ... considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”
Pascal (citado em Morin, 1996: 201)


"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
Sem pedras o arco não existe."
Italo Calvino (1993: 79)




O que é o conhecimento? O que é a realidade? Como se conhece? É possível para a consciência acessar o mundo externo? Existe um mundo externo? Pode o conhecimento científico ter acesso ao real, àquilo que realmente existe? Existe aquilo que realmente existe? O que é o conhecimento científico? Pode o conhecimento conhecer o conhecimento? O que pode o ser humano conhecer? Estas são questões básicas da epistemologia contemporânea, cuja resposta torna-se a cada dia mais difícil. Em seu livro O método 3: o conhecimento do conhecimento (Morin, 1999), Edgar Morin apresenta uma antropologia do conhecimento que, ao abordar as condições bio-antropológicas das possibilidades do conhecimento, afirma que "o conhecimento do conhecimento requer um pensamento complexo, que requer necessariamente o conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 257), ou seja, "um pensamento ao mesmo tempo dialógico, reflexivo e hologramático" (Morin, 1999: 256), que, ao evitar as dicotomias do holismo/reducionismo, do construtivismo/realismo e do espiritualismo/materialismo, permita "deslocar e ultrapassar o problema dos fundamentos" (Morin, 1999: 256) do conhecimento.
Morin inicia seu livro – dividido em nove capítulos, mais uma introdução geral e uma conclusão – dizendo que os enormes progressos da ciência nos séculos XIX e XX levaram a progressos equivalentes de conhecimento, mas, por outro lado, colocaram em cena a questão do "inacessível ao conhecimento" (Morin, 1999: 16). Nesse movimento, diz Morin, nossa razão descobre em si uma zona cega que nos obriga a "questionar tudo o que nos parecia evidente e reconsiderar tudo o que fundava as nossas verdades" (Morin, 1999: 16), de maneira que "a busca da verdade está doravante ligada à investigação sobre a possibilidade da verdade" (Morin, 1999:16), o que implica a necessidade de conhecer o conhecimento.
Para Morin, o conhecimento é um fenômeno multidimensional, "simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social" (Morin, 1999:18), mas que foi "rachado", no interior de nossa cultura, pela própria organização do conhecimento, especialmente pela disjunção entre ciência e filosofia e pela fragmentação disciplinar da ciência, culminando com a crise da idéia de fundamento na filosofia, desde a crítica kantiana, passando pelo niilismo radical de Nietzsche até a problemática heideggeriana de um "fundamento sem fundo" (Morin, 1999: 21).
Por outro lado, a despeito da crise do fundamento na filosofia, a ciência, até o início do século XX continuava a proclamar que havia encontrado o fundamento empírico da verdade. Morin destaca, neste contexto, a tentativa do Círculo de Viena de transformar a filosofia em ciência através do "positivismo lógico", que pretendia fundamentar todas as suas proposições em enunciados verificáveis. Porém, diz ele, esta pretensiosa tentativa de depurar o conhecimento de todas suas impurezas e chegar aos fundamentos indubitáveis do conhecimento e do real acabou se confrontando com a descoberta da ausência de tais fundamentos:
"a crise dos fundamentos do conhecimento científico encontra a crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, ambas convergindo para a crise ontológica do Real (...). Nada de base de certeza, nada de verdade fundadora. A idéia de fundamento deve afundar com a idéia de última análise, de causa última, de explicação primeira" (Morin, 1999: 23).
A partir de agora, sublinha Morin, a dúvida e a relatividade não são mais passíveis de eliminação, sendo preciso, ao contrário, radicalizar a dúvida radical, num movimento de ruptura com o paradigma moderno, caracterizado pelo determinismo e pelo propósito de reduzir a realidade a descrições cada vez mais simples.
Momentos de ruptura paradigmática constituem uma crise geral de percepção, na qual os instrumentos que utilizamos para compreender a realidade já não servem para captar as informações necessárias e tornaram-se inadequados para descrever as turbulências de um mundo em processo permanente de transformação. A ruptura com o paradigma1 da modernidade não é, evidentemente, uma transição clara e tranqüila. Para muitos ela pode ser inaceitável ou mesmo invisível. Afinal, trata-se de romper com um sistema geral de crenças e expectativas - expressas ou não, implícitas e explícitas, conscientes e inconscientes - que até então eram aceitas como verdadeiras com relação ao mundo em que se vive; de romper com alguns dos elementos chave do pensamento ocidental e da ciência moderna e buscar uma forma de pensamento diferente, não determinista nem mecanicista, uma forma de pensamento que rompa com o paradigma da simplicidade e incorpore a complexidade e o indeterminismo no pensamento científico.
Morin propõe enfrentar o desafio da complexidade do conhecimento através de uma reforma do pensamento que supere a cisão entre ciência e filosofia que foi imposta pela razão moderna. Contra essa separação entre ciência e filosofia e o conseqüente fechamento em si tanto de uma como de outra, Morin advoga a necessidade de "estabelecer o difícil diálogo ente a reflexão subjetiva e o conhecimento objetivo" (Morin, 1999: 29) para que a ciência e a filosofia possam "mostrar-se a nós como duas faces diferentes e complementares do mesmo: o pensamento" (Morin, 1999: 30). Com isso seria possível alcançar um pensamento capaz de considerar o conhecimento: "um pensamento à altura da complexidade e do caráter multidimensional do problema" (Morin, 1999: 30).
Definindo o problema do conhecimento como um desafio, a partir da famosa frase de Pascal – “Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, não posso conhecer as partes se não conhecer o todo” -, Morin faz uma breve descrição do problema da complexidade e critica a característica reducionista da ciência moderna que, presa ao objetivo de oferecer descrições cada vez mais simples da realidade, tentou reduzir o conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem, pensando que se conhecêssemos as partes poderíamos conhecer o todo2.
Diante do fato de que não se pode mais ancorar o conhecimento em uma "filosofia primeira", que teria a chave para alcançar o "fundamento indubitável do real", e tendo em conta a noção de sistemas complexos, Morin destaca a importância de conhecer o conhecimento para alcançar a reforma do pensamento na direção de um pensamento complexo. Porém, diz ele, "se não há fundamento seguro para o conhecimento, não o há, evidentemente, para o conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 24)3.
Para poder ir adiante na tarefa de conhecer o conhecimento Morin propõe partir do aporte de conhecimento trazido tanto pelo teorema de Gödel quanto pela lógica de Tarski, que propõem, em resumo, que "nenhum sistema cognitivo estaria apto a conhecer-se exaustivamente nem a se validar completamente a partir de seus próprios instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 24). Isso não significa abrir mão de tentar algum conhecimento, mas sim a compreensão de que a incompletude e a convivência com pontos cegos é uma condição do conhecimento. Todavia, insiste Morin, tanto a lógica de Tarski quanto o teorema de Gödel indicam que é possível de algum modo "remediar a insuficiência autocognitiva de um sistema pela constituição de um metassistema capaz de envolvê-lo e de considerá-lo como sistema-objeto" (Morin, 1999: 24).
Com esta afirmação Morin permite pensar em "conhecimento de segundo grau", que poderia tomar como objeto de exame a lógica e os princípios que regem nosso conhecimento, gerando "um sistema de metapontos de vista sobre o conhecimento" (Morin, 1999: 25), cuja constituição está em curso desde a epistemologia genética de Piaget e que deve se completar, acredita Morin, com a plena constituição de uma "ciência da cognição", que fará do conhecimento um objeto de conhecimento ao incorporar a problemática da reflexividade (Morin, 1999: 25-6) e respeitar a problemática complexa própria ao conhecimento do conhecimento4.
Com isso torna-se ao mesmo tempo necessária e possível uma reorganização epistemológica, com a constituição de uma "epistemologia complexa" cuja competência será muito maior do que a da epistemologia clássica:
"estará aberta para certo número de problemas cognitivos essenciais levantados pelas epistemologias bachelardiana (complexidade) e piagetiana (a biologia do conhecimento, a articulação entre lógica e psicologia, o sujeito epistêmico). Propor-se-á a analisar não somente os instrumento do conhecimento, mas também as condições de produção (neurocerebrais, socioculturais) dos instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 31).
Assim como Copérnico mostrou que a Terra não era o centro do universo, Hubble mostrou que o universo não tem centro. A reforma do pensamento concretizada pela epistemologia complexa proposta por Morin pode ser vista como uma revolução hubbleana, já que a epistemologia complexa é uma epistemologia sem fundamento (conforme a sugestão de N. Rescher, assumida por Morin), "um sistema em rede cuja estrutura não é hierárquica, sem que nenhum nível seja mais fundamental do que os outros" (Morin, 1999: 32). A isso Morin incorpora o que ele chama de recursividade rotativa, a qual permitiria tentar uma rearticulação/reorganização do saber na qual a "epistemologia não é o centro da verdade, gira em torno do problema da verdade passando de perspectiva em perspectiva e, tomara, de verdades parciais em verdades parciais ..." (Morin, 1999: 32).
Considerada esta epistemologia sem fundamento e, portanto, a inexistência de um centro da verdade, perdemos as ilusões positivistas e superamos o desvario cientificista do positivismo lógico, mas continuamos precisando enfrentar a questão de um conhecimento desprovido de fundamentos e, portanto, a existência inarredável de pontos cegos e de impotência cognitiva. Ou seja, é preciso continuar fazendo a interrogação radical sobre as possibilidades do conhecimento e do conhecimento do conhecimento: "é impossível fundar e acabar, não somente o conhecimento, mas também o conhecimento do conhecimento, o conhecimento do conhecimento do conhecimento, e assim ao infinito ..." (Morin, 1999: 33).
De toda maneira, diz Morin, é preciso tentar escapar da alternativa entre ceticismo e perspectivismo, "entre a ignorância e o obscurantismo" (Morin, 1999: 33). Afinal,
"na crise dos fundamentos e diante do desafio da complexidade do real, todo conhecimento hoje necessita refletir sobre si mesmo, reconhecer-se, situar-se, problematizar-se (...): não há conhecimento sem conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 34, itálico no original).

Mais ainda, diz Morin, não há vida sem conhecimento: "o ser vivo só pode sobreviver num meio com e através do conhecimento desse meio. A vida não é viável nem passível de ser vivida sem conhecimento" (Morin, 1999: 224, itálico no original). No caso específico do conhecimento humano, caracterizado como conhecimento espiritual - que só pode emergir numa cultura e que é inconcebível sem o cérebro – Morin afirma tratar-se do "conhecimento de um indivíduo ao mesmo tempo produto e produtor de um processo auto(geno-feno-ego)-eco-re-organizador" (Morin, 1999: 224), conhecimento ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, que organiza em representações as informações recebidas e os dados disponíveis e que só é possível na cultura, pois, como afirma Morin "o mundo está no espírito que está no mundo (...) a cultura está no espírito que está na cultura" (Morin, 1999: 258). Por isso, Morin afirma que
"a humanidade do conhecimento aparece-nos não somente como a união indissolúvel da animalidade e da humanidade do conhecimento, mas também como a união indissolúvel da humanidade e da culturalidade do conhecimento" (Morin, 1999: 259).

Livro complexo que propõe a formulação de um pensamento complexo para dar conta do conhecimento do conhecimento, O método 3 afirma-se como leitura indispensável para enfrentar o desafio da complexidade do real na sua multidimensionalidade, com todas as suas ligações, interações, implicações mútuas e paradoxos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1-CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
2-MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.
3-___________ . "Da necessidade de um pensamento complexo". In: MARTINS, Francisco Menezes e SILVA, Juremir Machado da (orgs.) Para navegar no século 21: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs, 1999b, p. 19-42

Um comentário:

  1. Muito boa sua resenha, mas ela parece ter se restringido á introdução. Que tens a dizer sobre outras partes do livro. Que tal a relação logos x mito? E o problema dos limites do cérebro humano?

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