quarta-feira, 26 de maio de 2010

Sociedade permissiva e a educação dos filhos: consumismo, narcisismo e irresponsabilidade

Sociedade permissiva e a educação dos filhos: consumismo, narcisismo e irresponsabilidade *

O que está acontecendo com nossas crianças? Esta é a pergunta que pais, professores e meios de comunicação têm feito cada vez mais insistentemente. Talvez a pergunta mais adequada fosse O que esta acontecendo com nossas famílias?. De qualquer modo para responder às perguntas anteriores preciso fazer uma outra pergunta, mais ampla: O que está acontecendo com o mundo?
Então, o que está acontecendo com o mundo? Nos últimos 40 ou 50 anos vêm ocorrendo transformações políticas, econômicas, tecnológicas, científicas, demográficas e culturais que afetam países, empresas, classes sociais, famílias. Transformações que afetam nosso cotidiano, provocam mudanças de valores, mudanças no modo de vida, mudanças na educação e conduzem à formação de uma sociedade tecnizada, individualista, consumista, permissiva, narcísica.
Algumas dessas mudanças podem ser percebidas em aspectos como o mundo do trabalho, (com a crescente indistinção entre tempo de trabalho / tempo de lazer, a escassez de empregos e as exigências de maior qualificação), a percepção do tempo ( tempo parece passar mais rápido, todos reclamam que não têm tempo), a violência (banalização da violência, sensação permanente de insegurança, medo dos espaços públicos e a proliferação de grades, cercas eletrônicas, vigias, armas), na televisão (aumento do tempo de transmissão, aumento do número de canais, guerras de audiência, vulgarização da programação, divulgação e fortalecimento de preconceitos e estereótipos, embaralhamento das faixas de idade da programação), na publicidade, na educação etc.
Em uma primeira definição esquemática dessa sociedade em que estamos vivendo e precisando educar nossos filhos podemos dizer que se trata de uma sociedade laxista, baseada em uma cultura do consumo narcísico e uma educação permissiva:
sociedade laxista / sociedade de consumo
capitalismo avançado (ou tardio)
racionalização e burocratização de todas dimensões da vida
conversão dos indivíduos em consumidores
degradação da autoridade familiar

educação permissiva

inculcação dos hábitos que formam o perfil psicológico do futuro consumidor
a criança aprende a ver toda autoridade, toda tradição e toda renúncia à satisfação imediata dos desejos como sinal de autoritarismo e repressão
criação de personalidades narcísicas, vítimas de ansiedade e insatisfação crônicas (que são os motores da voracidade consumista)

cultura do consumo narcísico
(ou cultura do narcisismo consumista)
liberdade narcísica de consumir
obediência à lei do mercado: hipnotizada pelo consumo, a 'massa' de sujeitos só se deixa mobilizar pelo que reverte de imediato em bem-estar físico, mental ou sexual
fuga alucinada de toda e qualquer responsabilidade pelo que se faz
busca do prazer imediato, sem esforço e sem conseqüências

Em resumo, temos um modo de vida em que o consumismo, a banalidade, a vulgaridade e a irresponsabilidade conduzem a um processo de perda de referencial, perplexidade, insatisfação e ansiedade que levam à culpabilização do outro e à busca por receitas prontas, manuais diversos, livros de auto-ajuda, especialistas e técnicos em qualquer coisa. Ou seja, a abrir mão de pensar com a própria cabeça.
Este processo de modificação profunda do modo de vida na sociedade contemporânea, muito bem definida por Bauman como sociedade líquida, vem pelo menos desde os anos 70 do século XX e afetou fortemente a geração de pessoas que nasceram entre o fim dos anos 50 e o início dos anos 60 do século passado (a minha geração) e continua a afetar a geração de adultos jovens estão hoje na faixa dos trinta anos. E claro, também os filhos destas gerações, pessoas que estão hoje na faixa dos 20 aos 30 anos que mesmo já sendo pais de filhos pequenos, continuam sendo filhos e adolescentes em função de uma educação típica da sociedade permissiva (a sociedade que criou a adolescência tardia).
Estas gerações, como todas as outras, viveram os conflitos da contradição entre os valores da educação de seus pais e os valores que começaram a se afirmar no mundo quando atingiram a adolescência e a juventude. Mas no caso de quem atingiu a adolescência a partir dos anos 80 e 90 do século passado, as velocidade das transformações acelerou e não deu tempo para que novos valores e convicções de afirmassem para substituir os padrões antigos, considerados defasados, obsoletos, caretas, dinossáuricos.
Oscilando entre o excesso de rigor de nossos pais e o excesso de liberalidade da assim chamada “geração hippie”, muitos de nós fomos pedir ajuda para "especialistas", fossem eles educadores, autores de manuais de educação ou de livros de auto-ajuda. Assim, ficamos oscilando entre modismos, oportunismos, boas-intenções e picaretagens.
Nesta busca, nos mortificamos por bater nos nossos filhos, nos mortificamos por não bater nos nossos filhos, nos mortificamos por não fazer todas as vontades dos nosso filhos, nos mortificamos por fazer todas as vontades dos nossos filhos, nos mortificamos por "não saber ser pais". E pusemos a culpa nos nossos pais, pusemos a culpa na televisão, pusemos a culpa nos comunistas, pusemos a culpa nos padres, pusemos a culpa nos militares, pusemos a culpa nos hippies, pusemos a culpa nos amigos dos nossos filhos, pusemos a culpa nos pais dos amigos dos nossos filhos, pusemos a culpa nos professores dos nossos filhos, pusemos a culpa na escola.
Corremos atrás de todas as modas, de todas as receitas, de todas as novidades psicológicas e pedagógicas. E esquecemos de pensar sobre o que acreditamos, esquecemos de pensar sobre quais são os nosso valores, esquecemos de pensar sobre o mundo que queremos para os nossos filhos, esquecemos de pensar sobre nossas responsabilidades. Esquecemos de pensar.
E, quase todo o tempo, dissemos uma coisa e fizemos outra: queríamos filhos "bem educados" e nunca dizíamos "por favor", "obrigado", "desculpe"; queríamos filhos obedientes, mas quebrávamos as regras que nós mesmos havíamos imposto; queríamos filhos tranqüilos e gritávamos, brincávamos de briga, etc; queríamos que nossos filhos se abrissem conosco, mas não nos abríamos com eles; queríamos ter diálogo com nossos filhos, mas nunca na hora da novela, na hora do jornal, na hora do futebol, no hora da conversa com a vizinha, etc; queríamos filhos com autonomia e responsabilidade, mas nunca negociamos regras nem deixamos claro do que gostamos e do que não gostamos.
E, quase o tempo todo, ensinamos o princípio da corrupção fizemos chantagem emocional.
E hoje continuamos assim: queremos que nossos filhos sejam honestos, mas não obedecemos as leis de trânsito e não nos importamos de furar a fila ou de "dar um jeitinho", sempre que possível; queremos que nossos filhos não usem drogas, mas não abrimos mão do nosso cigarro, da nossa cerveja, do nosso uísque, dos nossos tranqüilizantes, dos nosso outros tantos comprimidos; queremos que nossos filhos sejam saudáveis mas os empanturramos com salgadinhos, batatas fritas, hambúrgueres e refrigerantes; queremos que nossos filhos sejam austeros e comedidos, mas não abrimos mão da nossa comilança de fim de semana, da nossa gritaria familiar, etc; queremos que nossos filhos sejam econômicos, mas não resistimos a uma boa liquidação; queremos que nossos filhos não sejam fúteis, mas os inscrevemos em concursos de miss, rainha mirim, princesinha disso e daquilo, gato e gata, semanas fashion e coisas do gênero; queremos que nosso filhos cultivem o espírito e tenham sentimentos nobres, mas não abrimos mão da revista de fofocas e dos programas de baixaria na TV; queremos liberdade, mas não aceitamos a responsabilidade.
E quando nosso filhos não correspondem aos nossos sonhos e desejos dizemos que a culpa é deles, das companhias, da escola, do mundo de hoje em dia.
E nós? Ah!, nós sabemos o certo e o errado; nós podemos fazer qualquer coisa, por que é só dessa vez, é só por curiosidade, é só para saber como é; nós só bebemos socialmente, nós só fumamos por uma opção adulta; nós não somos dependentes, nós podemos parar quando quisermos. Porque, enfim, nós somos os reis da cocada preta.
Espero que o que eu disse até agora tenha incomodado. Espero, mais ainda, que cada um possa, honestamente, fazer um balanço de suas próprias atitudes e dizer que esta carapuça não serve. Vejam se me entendem: estou fazendo algumas generalizações. Na verdade, não sou contra o churrasco de domingo, nem contra a macarronada da nonna. O que eu quero é que a gente pense sobre isso, que perceba o sentido das coisas, que não faça só por fazer, só porque todo mundo faz. O que eu quero é que deixemos de fazer as coisas mecanicamente, que evitemos nos deixar embrutecer pela rotina. Não tenho receitas. Penso que não existem receitas. O que é preciso é pensar, refletir. Acho que é possível investir na busca de respostas a estas indagações. Mas isso exige um investimento. Investimento de tempo, dinheiro e interesse, não necessariamente nessa ordem. Investimento, enfim, no aprendizado de como educar os filhos na convivência cotidiana com eles.
Vejam bem, não adianta colocar os filhos em uma escola legal, escolhida a dedo, se a gente, no fundo, não confia na escola e sempre acha que "o meu rapazinho" ou "a minha princesinha" têm de ter tratamento especial. Mas também não adianta colocar os filhos em uma escola legal, escolhida a dedo, na qual a gente confia, se em casa as coisas funcionam como foi descrito antes.
E também não adianta colocar os filhos numa escola legal, comprar bons livros e bons discos, assistir programas culturais e cultivar papos cabeça se a gente não viver isso tudo honestamente, com sinceridade, humildade e simplicidade. E, claro, com responsabilidade.
Afinal, quais são nossos valores? Em que acreditamos? Que mundo queremos para nós? Que mundo queremos para nosso filhos? Em quem votamos para deputado e vereador?
Que livros temos na estante? Temos livros na estante? Lemos os livres que temos na estante? Que música ouvimos? Que conversas animam nossas rodas de amigos?
Como cada um de nós responderiam a estas perguntas: A que velocidade eu dirijo? Eu estaciono em local proibido? Eu paro na faixa de segurança? Eu respeito o pedestre? Eu falo ao celular enquanto dirijo? Eu desligo o celular no cinema? E na sala de aula, eu desligo o celular? Eu ouço os outros quando converso? Eu sei ouvir? E falar, eu sei falar para ser ouvido?
Como eu trato os animais de rua? E as pessoas de rua, adultos e crianças? E os desconhecidos, garçons, vendedores, atendentes, transeuntes, como os trato?
Afinal, quais são os meus valores? Em que eu acredito? Qual a coerência entre minha fala e minha prática? Qual a coerência entre o que eu digo e o que eu penso? E entre o que eu penso e o que eu faço?
É bom pensar com carinho e cuidado nisso tudo, porque, como já dizia Guimarães Rosa, viver é muito perigoso. Afinal, ninguém nunca viveu tempos totalmente favoráveis, em que fosse fácil ser homem (ou mulher) e levar uma vida boa. Como escreveu Jorge Luis Borges no início de um de seus contos: "Couberam a ele, como a todos os homens, maus tempos para viver." Também nós vivemos em tempos difíceis e por isso, como disse Fernando Savater em seu livro Ética para meu filho,
"A única coisa que posso garantir é que nunca se viveu no paraíso e que a decisão de viver bem cada um deve tomar a respeito de si mesmo, dia após dia, sem esperar que as estatísticas lhe sejam favoráveis ou que o resto do universo lhe peça por favor" (SP: Martins Fontes, 2000, p. 111).
E com isso volto à questão da responsabilidade – que é o fundamento de uma ética que pode superar o consumismo e o narcisismo – para concluir citando, mais uma vez, o filósofo espanhol:
"Responsabilidade é saber que cada um de meus atos vai me construindo, vai me definindo, vai me inventando. Ao escolher o que quero fazer vou me transformando pouco a pouco. Todas as decisões deixam marca em mim mesmo antes de deixá-la no mundo que me cerca." (SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 111).


*Palestra realizada na Escola de Educação Infantil Escolinha de Arte, em Santa Cruz do Sul, no dia 27 de abril de 2005.



Referências bibliográficas
COSTA, Jurandir Freire. "O ocaso da família". In A ética e o espelho da cultura. RJ: Rocco, 1994, p. 156
LASCH, Cristopher. O mínimo eu.
________________ . A cultura do narcisismo.
________________ . Refúgio num mundo sem coração.
SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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