terça-feira, 3 de março de 2009

Criança invisível, emoções sem palavras num filme que transborda sensibilidade e beleza.

O ruído do mar, as falésias, a areia pedregosa de uma praia européia, o barulho das gaivotas, as cores do verão. O tempo passa devagar, as ondas repetem incansavelmente o seu movimento de vaivém: sempre o mesmo e sempre tão diferente a cada vez. Uma família burguesa em férias. Um menino, a sua bicicleta e a solidão. Um mergulho, outro mergulho. Brincar sozinho cansa! De repente, uma menina sai do mar. Misteriosa, transparente, querendo brincar. Mais um mergulho, outro mergulho e outro mais. Como é bom brincar com um amigo! O sol, as cores do verão, a bicicleta, as gaivotas, o barulho do mar, andar de balanço, caminhar de mãos dadas, passear pelo campo. Duas crianças se descobrindo. A música embala nossa imaginação, as palavras são desnecessárias para a alma expressar a amizade. As palavras são desnecessárias para mostrar as emoções.
Estou falando de um poema, um pequeno poema visual. Um belo e comovente poema sobre solidão e amizade. Falo do filme A criança invisível, desenho animado do francês André Lindon (1984), que a Escolinha de Arte e a Associação dos Amigos do Cinema fizeram o inestimável favor de nos presentear na primeira semana de junho.
Um desenho animado feito sem computador nem parafernálias eletro-tecnológicas. Um desenho animado sem palavras, sem ratinhos sádicos, sem coelhos neuróticos, sem patas peruas, sem violência, sem sexismo. Um desenho animado cheio de cores e sons. Um desenho animado cujo tema é a solidão, o ciclo do tempo, a amizade. Mas lá isso é filme para crianças? Sim, claro que sim. Um filme para crianças sensíveis. Um filme, na verdade, para pessoas sensíveis, sejam elas adultos ou crianças. Como disse a mulher que eu amo, um poema para inteligências sensíveis. Um poema na tradição de Marcel Proust e de Marguerite Duras.
Um poema cinematográfico que nem todos viram. Alguns dos que viram não conseguiram ser livres para sentir as emoções, sentiram medo da liberdade de voar que a ausência de palavras nos oferece e ficaram buscando desculpas para sua recusa à imaginação. O clichê mais usado por esses foi de que não era um filme para crianças, afinal não tinha diálogos, não tinha brigas nem gritaria, não tinha ritmo de vídeo-clip, não tinha estereótipos nem piadas sobre sexo. E além disso, o supremo horror, mostrava o corpo com naturalidade, mostrava carinho e afetividade entre duas crianças. Claro, para os adultos do nosso tempo filme para criança precisa de heróis truculentos e heroínas histéricas. Claro, para os adultos do nosso tempo as crianças não podem ver corpos nus, mas em compensação não tem problema nenhum se virem massacres, matanças, corpos estraçalhados por socos, bombas ou balas de metralhadora. De preferência em desenhos feitos por computador e apresentados em programas de auditório conduzidos por loiras tatibitate de minissaias e botas brancas. Ó tempora, ó mores.
Mas nem tudo está perdido: as crianças curtiram o menino sensível e solitário e sua amiga imaginária, curtiram o som, as cores, a repetição, o ciclo das estações e da vida e se emocionaram com a força do mar, os flocos de neve, os tons da primavera. E também os adultos, os que conseguiram libertar a criança que nos habita e aprender com ela, estes se emocionaram com esse pequeno clássico do cinema de animação que já virou um cult entre platéias sensíveis em mostras e festivais no Brasil e na França. Além do privilégio, é também um honra dizer que Santa Cruz do Sul está neste circuito tão seleto do cinema não comercial (no Brasil este filme passou na Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, na Mostra de Cinema de São Luis do Maranhão, no Ciclo Cinema de Culto de Porto Alegre, em alguns ciclos especiais promovidos por salas alternativas em São Paulo e no Rio de Janeiro, sempre com o apoio precioso da Embaixada da França).
Algumas crianças muito pequenas, é claro, se agitaram e ficaram ansiosas diante do ritmo lento e da falta de "cenas de ação". Mas as maiores, entre os 5 e os 7 anos, conseguiram curtir e fruir desta experiência nova e rara. Assim como os poucos pré-adolescentes presentes. Conversando com alguma destas crianças dois dias depois da exibição pude colher alguns depoimentos muito interessantes.
E pude também constatar por suas falas que adultos despreparados (sejam pais, mães ou professoras/es) são exímios na "arte" de tolher a imaginação infantil e conduzir as crianças pelo caminho estreito das interpretações simplistas e preconceituosas. Para estes adultos, se um filme não tem palavras ele não prende a atenção, não diz nada, não educa e não diverte, não emociona. Para estes adultos eu recomendo a leitura do teórico húngaro Béla Balázs em um texto do início do século XX: "O não falar não significa que não se tenha nada a dizer. Aqueles que não falam podem estar transbordando de emoções que só podem ser expressas através de formas e imagens, gestos e feições. (...) Os gestos do homem visual não são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas sim as experiências interiores, emoções não racionais que ficariam ainda sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito. Tais emoções repousam no nível mais profundo da alma e não podem ser expressas por palavras, que são meros reflexos de conceitos (...). O que aparece na face e na expressão facial é uma experiência interior que é tornada imediatamente visível sem a mediação de palavras" (Béla Balász. O homem visível, em seu livro Theory of the film. New York: Dover, 1970, p. 40)
Este filme e as reações a ele me levaram a duas reflexões entrecruzadas: a importância de uma política de educação infantil que respeite as crianças e a necessidade de um trabalho de resistência contra a avalanche de clichês e estereótipos que a indústria cultural oferece como simulacro de "cultura para crianças".
No primeiro caso, o que está em jogo é o tipo de futuro que construiremos para e com as crianças. Assunto muito importante, acho que todos concordam. E que começa por algumas perguntas fundamentais: Quem é uma criança? O que é a infância? A infância simplesmente existe ou é uma criação nossa? Como uma criança aprende? O que significa educar? Partindo do fato já comprovado pelas ciências humanas de que cada sociedade inventa a sua própria imagem da infância e das crianças, busco o exemplo da experiência consagrada da política de educação infantil desenvolvida em Reggio Emilia, no norte da Itália. A pedagogia que inspira as creches e pré-escolas de Reggio Emilia parte de uma imagem da criança "como alguém que experimenta o mundo, (...) que está cheia de curiosidade, cheia de desejo de viver; (...) uma criança que é capaz de criar mapas para sua própria orientação simbólica, afetiva, cognitiva, social e pessoal" (Carlina Rinaldi em GANDINI, L & EDWARDS, C. Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre,: Artmed, 2002, p. 75-80).
Para esta pesquisadora, como a imagem da infância é uma convenção cultural, existem muitas imagens possíveis. Algumas, diz ela, "concentram-se no que as crianças são, no que elas têm e no que elas podem fazer, enquanto outras, infelizmente, concentram-se no que as crianças não são, no que elas não têm e no que elas não podem fazer. Por que isso?" (idem, ibidem). Ora, a imagem que fazemos das crianças é uma construção social e cultural, "uma questão sócio-política que permite ou não reconhecer certas qualidades e potenciais das crianças" (idem, ibidem) e que determina, desse modo se as levamos ou não em consideração na hora de definir o contexto educacional em que elas serão criadas.
Também é possível pensar e agir desta maneira em Santa Cruz do Sul. Aliás, isso vem sendo feito há mais de duas décadas na Escolinha de Arte, escola de educação infantil que já foi objeto de pesquisa de monografias, dissertações e teses acadêmicas. Conforme Marisa Oliveira, diretora da Escolinha de Arte, "acreditamos que o futuro somente será melhor se a sociedade investir em uma educação que trabalhe questões fundamentais como ética, cidadania, pluralismo cultural, diversidade, respeito às culturas, tolerância e solidariedade (...). Na preparação desse futuro, trabalhamos todos os dias para continuarmos uma escola apta a receber cada criança com suas diferenças, com seus sonhos, com seus beijos, e incluí-la em um processo de aprendizagem (...) que se fundamenta em valores humanistas de respeito à vida, à diferença, à criatividade, à liberdade e à busca da felicidade" (Marisa Oliveira. Fala infantil: palavra imaginada, palavra falada, palavra ouvida. Monografia de conclusão do curso de Pedagogia Educação Infantil, UNISC, 1999, p. 38).
O que isto tudo tem a ver com o filme A criança invisível?. Muito, muito mesmo. Especialmente com a necessidade de que nossas crianças, todas elas, possam ter oportunidade de assistir a filmes como esse (e a outros filmes infantis da mesma qualidade, como, por exemplo, outros dois desenhos trazidos pela Associação dos Amigos do Cinema em anos anteriores: Kuiriku e a feiticeira e Príncipes e princesas). E assim entro na minha reflexão final, sobre a resistência à mesmice e à vulgaridade que assolam a produção cultural para a infância, destacando o trabalho de formação de um público capaz de gostar de outras palavras, outras imagens, outras sonoridades. Os Amigos do Cinema vêm fazendo bravamente este papel em nossa cidade, mas é preciso que mais gente se junte a eles. Um bom começo é lotar as sessões das sextas-feiras à noite, desfrutar da ótima programação, trocar idéias nas agradáveis conversas de final de sessão, coordenadas e animadas com muita propriedade e conhecimento de causa pelo Josmar Reies, presidente da Associação dos Amigos do Cinema de Santa Cruz do Sul.

* Marcos Moura Baptista dos Santos. Sociólogo. Professor da Unisc. Mestre em Ciências Sociais. Doutorando em Sociologia. Realizador dos vídeos Até parece uma paisagem... (1987) e Trabalhos Arqueológicos em São João Velho (1991).

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