quarta-feira, 4 de março de 2009

É possível conhecer a realidade?

Complexidade, contingência e indeterminação na superação da razão moderna pela sociologia

I
Introdução
O que é o conhecimento? O que é a realidade? Como se conhece? É possível para a consciência acessar o mundo externo? Existe um mundo externo? Pode o conhecimento científico ter acesso ao real, àquilo que realmente existe? Existe aquilo que realmente existe? O que é o conhecimento científico? Estas são questões básicas da epistemologia contemporânea, cuja resposta torna-se a cada dia mais difícil e mais complexa.
Neste artigo procuro examinar como essas questões foram apresentadas e confrontadas na arquitetura teórica da reorganização epistemológica proposta/exigida pelo paradigma da complexidade apresentado por Edgar Morin e na discussão epistemológica pós-positivista da sociologia, especialmente suas ramificações construtivistas (ou sócio-construtivistas), de modo a poder observar e descrever com maior acuidade diversos aspectos ligados a nossas formas de pensar e de compreender o mundo, especialmente no âmbito das ciências sociais.
Na presente seção será feita, a título de introdução, uma descrição breve dos diferentes movimentos que caracterizaram o processo de superação do paradigma positivista nas ciências e na filosofia da segunda metade do século XX. Na seção II apresento e discuto os principais aspectos da teoria de sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann, na seção III será apresentada a proposição do paradigma da complexidade segundo Edgar Morin, e na seção IV são propostas algumas reflexões a partir da abordagem dos dois autores para pensar a possibilidade e o estatuto do conhecimento científico nas ciências sociais contemporâneas.
A crise dos fundamentos do conhecimento e ruptura paradigmática com o positivismo
Se os enormes progressos da ciência nos séculos XIX e XX levaram a progressos equivalentes de conhecimento, por outro lado colocaram em cena a questão do "inacessível ao conhecimento" (Morin, 1999: 16). Conforme Edgar Morin, nesse movimento nossa razão descobre em si uma zona cega que nos obriga a "questionar tudo o que nos parecia evidente e reconsiderar tudo o que fundava as nossas verdades" (Morin, 1999: 16), de maneira que "a busca da verdade está doravante ligada à investigação sobre a possibilidade da verdade" (Morin, 1999:16) e isso implica a necessidade de conhecer o conhecimento. Conforme Morin, o conhecimento é um fenômeno multidimensional, "simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social" (Morin, 1999:18), mas que foi "rachado", no interior de nossa cultura, pela própria organização do conhecimento, especialmente pela disjunção entre ciência e filosofia e pela fragmentação disciplinar da ciência. Ainda mais profundamente, diz Morin, "o acontecimento decisivo do século XIX (...) foi a crise da idéia de fundamento" (Morin, 1999: 21) na filosofia, desde a crítica kantiana, passando pelo niilismo radical de Nietzsche até a problemática heideggeriana de um "fundamento sem fundo".
Por outro lado, a despeito da crise da idéia de fundamento na filosofia, a ciência, até o início do século XX, continuava a proclamar que havia encontrado o fundamento empírico da verdade. Destaca-se neste contexto a tentativa do Círculo de Viena de transformar a filosofia em ciência através do "positivismo lógico", que pretendia fundamentar todas as suas proposições em enunciados verificáveis. Porém, esta pretensiosa tentativa de depurar o pensamento de todas suas impurezas e chegar aos fundamentos indubitáveis do conhecimento e do real acabou se confrontando com a descoberta da ausência de tais fundamentos:
"a crise dos fundamentos do conhecimento científico encontra a crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, ambas convergindo para a crise ontológica do Real (...). Nada de base de certeza, nada de verdade fundadora. A idéia de fundamento deve afundar com a idéia de última análise, de causa última, de explicação primeira" (Morin, 1999: 23).
A partir de agora, destaca Morin, a dúvida e a relatividade não são mais passíveis de eliminação, sendo preciso, ao contrário, radicalizar a dúvida radical, num movimento de ruptura com o paradigma moderno, caracterizado este pelo determinismo e pelo propósito de reduzir a realidade a descrições cada vez mais simples.
Momentos de ruptura paradigmática constituem uma crise geral de percepção, na qual os instrumentos que vínhamos utilizando para compreender o mundo já não servem mais para construir as distinções necessárias para observar e descrever um mundo em processo permanente de transformação. A ruptura com o paradigma1 da modernidade não é, evidentemente, uma transição clara e tranqüila. Para muitos ela pode ser inaceitável ou mesmo invisível. Afinal, trata-se de romper com um sistema geral de crenças e expectativas - expressas ou não, implícitas e explícitas, conscientes e inconscientes - que até então eram aceitas como verdadeiras com relação ao mundo em que se vive; de romper com alguns dos elementos chave do pensamento ocidental e da ciência moderna e buscar uma forma de pensamento diferente, não determinista nem mecanicista, uma forma de pensamento que rompa com o paradigma da simplicidade e incorpore a complexidade e o indeterminismo no pensamento científico.

A ruptura pós-positivista nas ciências sociais e a emergência do construtivismo operativo
Na segunda metade do século XX surgem nas ciências humanas diversas tentativas de superação do paradigma positivista que havia dominado o modo de produção de conhecimento na sociedade ocidental moderna. O paradigma positivista pode ser caracterizado pela concepção do conhecimento como cópia ou reflexo de uma realidade externa e objetiva, cuja existência real seria incontestável. Baseado nisso, o positivismo iria propugnar a separação absoluta e radical entre o sujeito que investiga e o objeto da investigação e a redução da ciência ao esforço de verificar conceitos e proposições para estabelecer as provas de sua veracidade através de uma série de operações neutras e transparentes baseadas na observação da realidade e na razão objetiva. Dando por incontestável que a realidade tem uma existência objetiva, independente do observador e das diferentes perspectivas que este poderia assumir, o paradigma positivista despojou o cientista de qualquer resquício de subjetividade e de valores em sua construção teórica e assumiu a neutralidade do conhecimento, além de propor a assimilação das ciências humanas às ciências naturais.
As críticas à concepção de ciência do positivismo, feitas por Popper, Lakatos e Kuhn, irão conformar uma nova filosofia da ciência que se fundamenta na idéia de uma maior proximidade entre as ciências naturais e as ciências sociais e destaca o caráter construtivista das ciências sociais, cimentando as bases para um renascer da dimensão hermenêutica da sociologia. Contudo, as respostas críticas ao positivismo, mais do que constituir um novo paradigma, expressam um momento de indefinição paradigmática e de crise do pensamento da modernidade. As diversas perspectivas pós-positivistas surgidas neste período (etnometodologia, interacionismo simbólico, fenomenologia, escolha racional, entre outras) têm em comum a concepção de que o objeto social não é uma realidade fática, sendo, ao contrário, conformado por sujeitos que pensam e atuam de acordo com valores e/ou interesses. Além disso, estas diversas perspectivas pós-positivistas tendem a propugnar a unidade entre sujeito e objeto de investigação e a valorização da subjetividade e da interpretação. A superação da crise da racionalidade moderna aponta para uma nova forma de racionalidade baseada na complexidade e fundada sobre uma epistemologia construtivista que reconhece o papel determinante do cientista na construção da realidade a ser estudada.
Desde meados dos anos setenta do século passado, com a crise da hegemonia do pensamento marxista e do estruturalismo nas ciências sociais, este pós-positivismo iria originar o que Alexander (1987) chamou de "o novo movimento teórico". Baseado nas contribuições dos pós–estruturalistas franceses como Bourdieu e Foucault, mais a teoria da estruturação de Giddens, a teoria da ação comunicativa desenvolvida por Habermas e a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Luhmann, este "novo movimento teórico" iria - apesar das substanciais diferenças teóricas entre os autores citados - consolidar uma postura epistemológica cuja questão central era a preocupação de manter a pertinência de um processo de construção do discurso científico no âmbito de um processo de desdogmatização que, no limite, questionava a própria possibilidade do conhecimento racional (Barbosa, 1998)2. Estas discussões passavam por questões como o estatuto da ciência e a fundamentação teórica da natureza das ciências sociais, evidenciando uma rejeição do estruturalismo unilateral e destacando, no caso da sociologia, ao mesmo tempo a importância da construção de teorias gerais e a compreensão da multidimensionalidade do social.
Ainda conforme Alexander (1987), é possível identificar, no processo que foi sumariamente descrito no parágrafo anterior, uma especificidade da discussão pós-positivista na França - a questão da historicização do processo do conhecimento, especialmente o desvendamento das bases em que se assenta a visão moderna da ciência - e três diferentes respostas construtivistas para a questão da relação entre produção de conhecimento e realidade - o construtivismo crítico (Giddens), o construtivismo reconstrutivista (Habermas) e o construtivismo sistêmico (Luhmann).
A superação do positivismo lógico na França se dá com Gaston Bachelard, que propõe uma nova filosofia da ciência cuja questão central é saber o que está subjacente a nossas escolhas teóricas, qual o a priori histórico das ciências. Bachelard critica a concepção da filosofia como iluminadora dos fundamentos da ciência, descartando a possibilidade de existirem fundamentos lógicos a priori, ou seja, para ele não existe uma lógica fora da história. Sua tentativa de pensar a ciência como a invenção de uma racionalidade na prática afirma que não existe uma lógica a ser encontrada pela ciência, mas que é a prática científica que constrói suas próprias condições de possibilidade, ou seja, a questão central é saber como a ciência se torna possível se está descartada a idéia de uma fundamentação da ciência numa filosofia. Pierre Bourdieu apropria-se da problemática de Bachelard colocando-se a seguinte questão: quais as condições sociológicas da possibilidade do fazer científico? Para dar conta desta questão Bourdieu entende ser necessário reconstruir o objeto científico e expor os pressupostos escondidos da ciência pela historicização das condições de possibilidade de tomadas de posição, de modo a poder responder a seguinte questão: como posso tomar posições que sejam posições científicas?3
Dentre os autores apontados como construtivistas por Alexander (1987), Niklas Luhmann foi aquele que mais radicalizou na busca de uma teoria geral que desse conta das possibilidades e dos limites do pensamento, colocando com todo o rigor questões sobre como o conhecimento, e em particular o conhecimento científico, pode manter contato com a realidade. Mais ainda, Luhmann tratou de questionar não somente a possibilidade de conhecer a realidade como a própria definição de realidade objetiva, além de destacar a deficiência teórica da teoria sociológica tradicional e aprofundar a epistemologia construtivista com o que ele chamou de construtivismo operativo, também conhecido como construtivismo radical ou construtivismo sóciopoiético (Arnold, 2004; Pintos, 1994; Luhmann, 1997).

II
Niklas Luhmann e a teoria dos sistemas sociais
Apresentar o pensamento de um autor como Luhmann é uma tarefa das mais difíceis, devido tanto à complexidade da sua teoria como à erudição do autor e à vastidão de sua obra, que não se presta a apresentações sistemáticas. Nas páginas seguintes procuro apresentar os principais tópicos da labiríntica construção teórica de Niklas Luhmann que são fundamentais para uma aproximação de seu construtivismo-sistêmico.
O marco teórico de que parte Luhmann é a Teoria de Sistemas, à qual ele incorpora elementos da fenomenologia, da biologia experimental e da cibernética. Luhmann procura criar novos estímulos ao pensamento sociológico a partir de descobertas e invenções conceituais da teoria de sistemas que lhe permitam enfrentar questões como as seguintes:
"Como podem os sistemas sociais serem concebidos como sistemas fechados que só podem operar de forma auto-referencial? Quais são, para esses sistemas, os elementos últimos, não mais passíveis de serem decompostos? Como é possível explicar que sua autopoiésis funciona sem contato cognitivo com o ambiente, mas com acoplamento estrutural a ele e pode ser evolutivamente exitosa? É o acoplamento estrutural a um ambiente não acessível cognitivamente um conceito com o qual se pode esclarecer a relação entre sistema social e consciência ou entre sistema social e indivíduo?" (Luhmann, 1997b:57)
Para dar conta deste conjunto de questionamentos o autor retoma a Teoria de Sistemas a partir da mudança de paradigma que ocorre com a passagem da distinção entre o todo e as partes para a distinção entre sistema e ambiente (Luhmann, 1995; 1997a; 1997b; 1997c), incorporando o antigo paradigma da diferença entre o todo e as partes através de uma teoria da diferenciação sistêmica que será chave para a compreensão da sociedade (Luhmann, 1995: 1-11).
Ao destacar a distinção sistema-entorno como a contribuição fundamental dos novos desenvolvimentos epistemológicos na teoria de sistemas, Luhmann permite superar a separação parte-todo e as correspondentes separações sujeito-objeto, indivíduo-sociedade que guiaram a razão moderna e recolocar noutros termos o dilema pascaliano, por meio da noção de diferenciações sistêmicas que recursivamente produzem e reproduzem novas diferenciações sistema-entorno dentro do sistema, e do conceito de observação de segunda ordem ou observação de observações.
Em um artigo sobre os novos desenvolvimentos da teoria de sistemas Luhmann escreve que a "teoria dos sistemas nada mais é do que a sugestão de uma determinada diferenciação, ou seja, aquela entre sistema e ambiente" (Luhmann, 1997b:54). Contudo, diz ele, sempre é possível partir de "outras intermináveis diferenciações" – bem e mal, homem e mulher, parte e todo, sujeito e objeto -, mas então, "quando se parte de uma outra diferenciação, constrói outros objetos, fala-se de outras coisas, observa-se outros fenômenos" (Luhmann, 1997b: 50).
Outra mudança de paradigma na teoria de sistemas ocorreu com a incorporação do conceito de autopoiése, desenvolvido por Humberto Maturana e Francisco Varela (1995), e conduziu à construção de uma teoria de sistemas auto-referenciais operacionalmente fechados (Luhmann, 1997c: 63), a qual se sustenta sobre uma nova tríade conceitual: autopoiése, fechamento operacional e acoplamento estrutural. Para Maturana, conforme citado por Luhmann, sistemas autopoiéticos são:
"networks of productions of components that recursively, through their interactions, generate and realize the network that produces them and constitute, in the space in which they exist, the boundaries of the network as components that participate in the realization of the network" (Maturana apud Luhmann, 1990:3)
Para Luhmann, o conceito de autopoiése traz uma importante inovação teórica ao transpor o conceito de auto-organização do nível das estruturas para o nível dos elementos. Como só existem através da diferenciação com o ambiente, os sistemas auto-referenciais não podem utilizar suas próprias operações para fazer contatos com o ambiente. Mais ainda, os sistemas autopoiéticos não podem importar nenhum elemento do ambiente, precisando produzir eles próprios, através de diferenciações internas, todas as unidades e elementos de que necessitam para as suas operações (conforme o conceito de fechamento operacional). No entanto, como diz Luhmann, obviamente os sistemas autopoiéticos "operam num mundo sem o qual não poderiam existir e todas as suas operações pressupõem, a cada momento, um acoplamento estrutural a este mundo" (Luhmann, 1997b: 53)4.
Portanto, a noção de acoplamento estrutural, decorrência obrigatória da própria auto-referência, é o que dá consistência à teoria dos sistemas autopoiéticos: o fechamento operacional característico da reprodução autopoiética torna-se compatível com a existência de interdependências regulares entre os sistemas e o ambiente através do acoplamento estrutural, quando "os efeitos do ambiente aparecem no sistema como informação e podem ser processados nele como tal" (Luhmann, 1997a: 42).
No entendimento de Luhmann não há nada na definição de Maturana para os sistemas autopoiéticos que nos obrigue a restringi-la ao campo da biologia, embora não se possa obscurecer as importantes diferenças que existem entre sistemas vivos e sistemas sociais5. Na verdade, diz Luhmann, os sistemas vivos são apenas um tipo específico de sistemas autopoiéticos, o que torna necessária uma teoria geral de sistemas autopoiéticos que permita uma abordagem multi-nível capaz de distinguir sistemas vivos, sistemas psíquicos e sistemas sociais como diferentes espécies de sistemas autopoiéticos de acordo com seu modo de realização de autopoiése. Nesse sentido, Luhmann propõe abstrair o conceito de autopoiésis de suas conotações biológicas através da distinção entre sentido e vida como espécies diferentes de organização autopoiética. Ele indica também a necessidade de distinguir, no conjunto de sistemas baseados no uso de sentido, aqueles cuja operação autopoiética é baseada na consciência (sistemas psíquicos) e aqueles cuja operação tem por base a comunicação (sistemas sociais) (Luhmann, 1990: 2).
Esta distinção, porém, traz outro problema para a tentativa de aplicar a teoria autopoiética aos sistemas sociais: se os seres humanos são os elementos constituintes de um sistema social, como pode este sistema ser considerado auto-produtor de seus próprios elementos se está claro que a sociedade não produz as individualidades biológicas?. Luhmann oferece uma resposta radical para o problema buscando um outro elemento constituinte do sistema social que não os seres humanos. Assim, Luhmann define os sistemas sociais como sendo realizados no domínio das comunicações e procura desenvolver uma teoria dos sistemas sociais que dê conta da sua especificidade de sistemas cuja operação de auto-reprodução tem por base a comunicação (Luhmann, 1990: 3).
Luhmann voltou-se para a teoria de sistemas buscando fazer avançar o conhecimento sociológico. Neste sentido, sua teoria de sistemas sociais é também uma teoria sociológica da sociedade e, portanto, deve preocupar-se em dizer o que é a sociedade, ou melhor, apresentar um conceito de sociedade. Porém, entende Luhmann, uma série de preconceitos e expectativas tradicionais sobre este conceito funcionam como obstáculos epistemológicos (no sentido dado por Bachelard) que impedem a construção de um conceito verdadeiramente sociológico de sociedade. Entre estes obstáculos ele apresenta três como os mais importantes:
a)o preconceito humanista, que pressupõe a sociedade como constituída de pessoas ou de relações entre pessoas;
b)o segundo preconceito seria a pressuposição de uma multiplicidade territorial de sociedades;
c)finalmente, o terceiro preconceito decorre da teoria do conhecimento positivista, que concebe sujeito e objeto como separados e só reconhece a existência de conhecimento quando qualquer relação circular deste com seu objeto for evitada. É à superação deste último preconceito, derivado do positivismo, que Luhmann dedica maior atenção na sua tentativa de construção de um conceito sociológico de sociedade, a partir do entendimento que a sociedade é claramente um objeto que se autodescreve: "Teorias da sociedade são teorias da sociedade sobre a sociedade. Quando isto é proibido pela teoria do conhecimento, não pode existir nenhum conceito adequado de sociedade" (Luhmann: 1997d: 77).
É para superar estes obstáculos epistemológicos que Luhmann parte do conceito de sistema para descrever a sociedade como um sistema auto-referente constituído por comunicações, que se auto-observa e se autodescreve:
"a sociedade é o sistema abrangente de todas as comunicações, que se reproduz autopoieticamente, na medida em que produz, na rede de conexão recursiva de comunicações, sempre novas (e sempre outras) comunicações. A emergência de um tal sistema inclui comunicações, pois elas só são passíveis de conexão internamente, excluindo todo o resto. A reprodução de tal sistema exige, pois, a capacidade para discriminar entre sistema e ambiente" (Luhmann, 1997: 77).
Ao descrever a sociedade como um sistema social autopoiético cuja operação fundamental é a comunicação, Luhmann exclui os seres humanos da sociedade:
"à sociedade pertence apenas aquilo que no processo de comunicação é tratado como comunicação, isto é, aquilo que em referência recursiva a outras comunicações é produzido como operação do sistema. (...) Todo o resto, especialmente a existência corpórea e psíquica dos indivíduos e também seu comportamento perceptível, naqueles aspectos que não são tratados como comunicação, permanece como ambiente do sistema" (Luhmann, 1997c: 70)6.
Com a afirmação de que apenas a comunicação é necessária e inerentemente social e que os sistemas sociais são redes cujos elementos constituintes são comunicações produzidas e reproduzidas recursivamente por estas redes e que não podem existir fora delas (Luhmann, 1990:3-6), Luhmann propõe uma revolução conceitual na sociologia, pois se o elemento que constitui o domínio social é a comunicação (Luhmann, 1995:138-39), a condição para explicar os níveis operativos do sistema deixa de ser uma teoria da ação e passa a ser uma teoria da comunicação (Luhmann, 1990: 6). Neste sentido, Luhmann propõe que se construa a teoria da sociedade com um olho voltado para o conceito de sistema e outro voltado para o conceito de comunicação (Luhmann, 1997d: 80). Somente colocando-se o conceito de comunicação como fundamento é possível pensar "num sistema social como um sistema autopoiético, constituído só por elementos, isto é, comunicações, que ele próprio, através da rede de conexões desses mesmos elementos, produz e reproduz via comunicações" (Luhmann, 1997d: 80).
Neste contexto o próprio conceito de comunicação é alterado, deixando de ser possível reduzi-lo à ação comunicativa ou pensá-lo como transmissão de mensagens ou informações de um emissor para um receptor. Luhmann considera que esta metáfora, além de enfatizar em demasia o ato de transmissão, exagera a identidade do que seria transmitido. Dessa maneira, entender a comunicação como um processo de transmissão conduziria a pensar a informação como algo que o emissor dá (e portanto deixa de ter) e que o receptor passa a ter (e portanto não tinha antes), além de fazer acreditar que a informação transmitida seria a mesma para o emissor e o receptor, ou seja, que teria um sentido definido previamente ao ato de comunicação. Ao contrário, diz Luhmann, a comunicação é uma diferenciação entre informação, mensagem e compreensão e só se realiza quando estes três aspectos podem ser sintetizados (Luhmann, 1997d: 80; Luhmann, 1990: 3). Ao mesmo tempo, a comunicação entendida como diferenciação entre informação, mensagem e compreensão é uma diferenciação que produz diferenciações, ou seja, a comunicação uma vez estabelecida produz outras comunicações e mantém o sistema em funcionamento (Luhmann, 1997d: 81).

Diferenciação funcional e sociedade moderna
Conforme Luhmann, os sistemas sociais, como de resto qualquer sistema autopoiético, desenvolvem-se através do tempo graças à sua capacidade de diferenciação. Assim, para lidar com um ambiente complexo os sistemas sociais precisam ampliar sua complexidade interna, o que fazem pela replicação, dentro do sistema, da diferença sistema-ambiente. Ou seja, a diferenciação é a forma reflexiva da construção de sistemas, sendo que sistemas diferenciados possuem dois tipos de ambiente: o ambiente externo, comum a todos os subsistemas, e o interno, específico para cada subsistema (Luhmann, 1995:18). Conforme destacam Rodriguez & Arnold, o processo de diferenciação continua ao nível dos subsistemas, "repitiéndose el mismo mecanismo y llegando a organizaciones e interacciones de gran especificidad" (Rodriguez & Arnold, 1991: 83).
Com esta noção de diferenciação sistêmica Luhmann articula a teoria dos sistemas sociais auto-referenciais a uma teoria da evolução, o que lhe permite descrever o processo de modernização nos termos de uma transição de uma sociedade estratificada para uma sociedade diferenciada em sistemas funcionais. No curso desta transformação, que se completou em torno do final do século dezoito na Europa, o mundo “monocontextural” e hierarquicamente ordenado da sociedade pré-moderna foi substituído por um mundo “policontextural”7, no qual o esforço de reprodução da sociedade foi distribuído entre uma pluralidade de sistemas não redundantes – econômico, jurídico, artístico, científico, político, educacional, religioso, familiar, da saúde – cada qual com uma função e operando com base em seu próprio código específico. A sociedade moderna é descrita, assim, como um sistema de comunicações que evolui historicamente por meio de diferenciações funcionais que dão origem a sistemas parciais, os quais, por sua vez, se diferenciam internamente originando sub-sistemas, e assim sucessivamente.
A enorme complexidade da sociedade moderna8 só pode ser compreendida e manuseada através de reduções sucessivas. A idéia de redução da complexidade é uma das bases da teoria dos sistemas sociais, sendo que a função principal dos sistemas sociais parciais, como a religião, a família, as universidades, as empresas, o direito, a ciência, a economia, etc., é justamente de reduzir a complexidade do mundo, de forma que ela possa ser entendida pelas pessoas (ou, na linguagem de Luhmann, pelos sistemas psíquicos). Numa solução paradóxica, para reduzir a complexidade do ambiente os sistemas precisam aumentar a sua própria complexidade através da diferenciação interna e a criação de novos e sucessivos sub-sistemas, para os quais os sistemas funcionais funcionam como ambiente, sendo a sociedade (o sistema societal, que compreende todas as comunicações possíveis) o ambiente de todos os sistemas sociais, isto é, o sistema encompassador de todos os demais tipos de sistemas sociais (sistemas funcionais, interações, organizações).
Luhmann, portanto, compreende a sociedade moderna como um complexo sistema de comunicações que se diferencia internamente em uma rede de sub-sistemas sociais interconectados que se reproduzem por meio de operações específicas próprias, através das quais cada sub-sistema observa a si próprio e ao ambiente. É importante ressaltar que o quer que seja que o sistema observe isto será sempre marcado por sua perspectiva única e específica e pelos conseqüentes “pontos cegos” derivados das distinções particulares que cada sistema utiliza para suas observações9.

Cibernética de segundo grau: a sociologia como observação de observações
Ao descrever a segunda mudança de paradigma na teoria de sistemas, Luhmann destaca que o fundamento mais importante do novo paradigma é a distinção entre sistema e ambiente.
Contudo, diz Luhmann, diferenciações como sistema-ambiente, eu-outros, bom-mau, verdadeiro-falso, sujeito-objeto, podem ser escolhidas de forma arbitrária. Cada sistema de observação opera a partir de uma diferenciação que o habilita a observar10, mas escapa à observação como um ponto cego: "ele não pode ver o que ele não pode ver" (Luhmann, 1997b: 56). Porém, continua Luhmann, "outros sistemas podem utilizar outras diferenciações para observar o sistema de observação" (Luhmann, 1997b: 56), de modo que temos uma multiplicidade de diferenciações possíveis, o que supõe um mundo policontextural, no qual não existem posições absolutas e onde cada diferenciação precisa legitimar-se pela construção de "um quadro teórico de referência mais geral que seja capaz de mostrar que tudo depende desta (ou de outra) diferenciação" (Luhmann, 1997b: 54).
A superação de colocações ontológicas coloca como tarefa a construção de uma nova plausibilidade, baseada no fato de que “aquello que se construirá como realidade está garantizado sólo a través de la observabilidad de observaciones" (Luhmann apud Pintos, 1994: 6). Para Luhmann isto leva a uma teoria geral da observação recursiva de observações
"para a qual não existem mais nenhum tipo de posições absolutas, de posições subtraídas à observação, de pontos de partida vistos como únicos corretos; isto é, também nenhuma razão, ou seja, nenhum tipo de certezas transcendentais, mas sim apenas diferenciações operacionalmente colocadas que possibilitam, a cada vez, cognições sistêmicas específicas, mas também, justamente, observações e descrições daquilo que para outros sistemas é inacessível a partir de outros pontos de partida" (Luhmann, 1997b: 56).
E somos assim conduzidos à discussão das questões da objetividade e da própria possibilidade do conhecimento sociológico. Luhmann chega a afirmar que
"para fins sociológicos faz mais sentido passar para a cibernética de segunda ordem. Isto é, apenas sistemas de observação serão observados. Surge assim, no lugar dos requisitos clássicos de objetividade e consenso e suas metodologias, a diferenciação do observador: ver aquilo que os outros podem e não podem ver" (Luhmann, 1997c: 72).
Ao enfrentar os questionamentos acerca de como pode a sociologia conhecer a sociedade se ela própria opera na sociedade, amplia a problemática também para as ciências da natureza afirmando que :
"Mais do que nunca vê-se hoje que este não é um caso específico das ciências sociais, mas que, ao contrário, tem validade geral. Também o físico só pode observar, porque ele mesmo funciona fisicamente, ou seja, porque participa da realidade física. Também o biólogo só pode observar como biólogo vivo. Em determinadas proporções as observações obrigam o observador, por essa razão, sempre a conclusões retroativas com relação a si próprio e aos instrumentos com os quais a observação altera o campo de seu próprio objeto" (Luhmann, 1997a: 44-45).
Assim, Luhmann coloca a questão das exigências de neutralidade e objetividade em outro patamar, superando a dicotomia entre sujeito e objeto pela unidade da diferenciação observador-observado. Cabe destacar que não se trata, porém de um observador passivo, que se limita a registrar aquilo que o objeto observado mostra mas, ao contrário, trata-se de um observador que assume uma posição ativa11, como aponta Izuzquiza ao destacar a importância do conceito de observação12 para Luhmann,
"no hay nunca observación neutral que no se encuentre dirigida por una diferencia o por un conjunto de diferencias. Al observar se elige uno de los lados que componem la diferencia y se describe cuanto se ve de acuerdo con ese lado elegido" (Izuzquiza, 1990: 20).
Ou seja, tudo que é observado é observado por um observador que faz um corte na realidade de modo a tornar possível a observação: "without distinctions there would be no observable reality, yet reality itself knows no distinctions" (Knodt, 1995: xxxiv). Cada corte ilumina determinados aspectos da realidade e deixa outros no escuro. Para cada distinção selecionada seria possível escolher diversas outras. A realidade como tal, porém permanece inacessível, pois o acesso a ela depende da distinção de que parte o sistema observador, mas o sistema não pode ver a diferenciação que utiliza para observar. Mesmo uma observação de segunda ordem, que conseguiria ver o que a observação de primeira ordem não pode ver, tem o seu ponto cego (a própria distinção que lhe permite ver o que o outro não vê que não pode ver (Pintos, s. d.; Knodt, 1995), o qual por sua vez pode ser visto por outro sistema observador de sistemas de observação que parte de outra distinção. Não existe, portanto, um superobservador científico, detentor de uma verdade incontestável:
"Não existe nenhum sistema externo à sociedade, nenhuma consciência (por exemplo, a minha) que possa observar e descrever a sociedade de forma adequada. (...) Cada teoria da sociedade – até mesmo a que é aqui recomendada – contém, por essa razão, um componente autológico. Ao falar da sociedade, ela também fala de si mesma, já que sua realização operacional somente é possível como autopoiésis da sociedade, só na rede recursiva da comunicação social" (Luhmann, 1997c: 72).
Uma teoria do conhecimento construída desta maneira, que começa com a descrição de uma realidade que gradualmente é revelada como uma realidade construída, e que reconhece que todo o conhecimento é contingente, pode, como diz Knodt (1995: xxxiv), ser chamada de construtivista, apesar de todas as reservas que Luhmann tem com este termo (Luhmann, 1997e).
Luhmann irá chamar tal teoria do conhecimento de pós-transcendental. Com isso, segundo Knodt, ele está apontando que "the epistemological question of how knowlwdge of an external world is possible under the conditions of autopoietic closure is inseparable from the specific socio-historical conditions under wich it arises" (Knodt,1995: xxxv). Para Luhmann, historicamente a teoria da ciência, um subsistema do sistema social da ciência criado para a auto-observação do sistema da ciência, vai-se estabelecer no momento em que, no curso da modernização no século XVIII, o relacionamento ente conhecimento e realidade torna-se problemático (Luhmann, 1995: 478). Uma epistemologia pós-transcendental, portanto, pressupõe uma teoria da modernidade que inclui uma reflexão sistemática sobre o seu próprio lugar dentro da sociedade moderna13.
Conforme referido anteriormente, Luhmann descreve o processo de moderrnização que se completou ao final do século dezoito na Europa como como a transição de um mundo pré-moderno hierarquicamente ordenado para um mundo moderno policontextural, funcionalmente diferenciado entre uma pluralidade de sistemas funcionais, cada um operando com base em su próprio código sistêmico específico.
Nesta sociedade moderna policontextural diferenciada em sistemas funcionais não redundantes e acoplados estruturalmente de modo que nenhum sistema funcional pode controlar, dominar ou substituir nenhum outro, a ciência perdeu seu lugar de única detentora da verdade e a teoria não pode prescrever normas ou recomendar cursos de ação: "the theorist of cognition himself becomes a rat in the labyrinth and must consider from which position observes the other rats" (Luhmann, apud Knodt, 1995: xxxvi).

III
Edgar Morin: o conhecimento do conhecimento e a epistemologia da complexidade
Morin propõe enfrentar o desafio da complexidade do conhecimento através de uma reforma do pensamento que supere a cisão entre ciência e filosofia que foi imposta pela razão moderna. Contra essa separação entre ciência e filosofia e o conseqüente fechamento em si tanto de uma como de outra, Morin advoga a necessidade de "estabelecer o difícil diálogo ente a reflexão subjetiva e o conhecimento objetivo" (Morin, 1999:29) para que a ciência e a filosofia possam "mostrar-se a nós como duas faces diferentes e complementares do mesmo: o pensamento" (Morin, 1999: 30). Com isso seria possível alcançar um pensamento capaz de considerar o conhecimento: "um pensamento à altura da complexidade e do caráter multidimensional do problema" (Morin, 1999: 30).
Definindo o problema do conhecimento como um desafio, a partir da famosa frase de Pascal – “Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, não posso conhecer as partes se não conhecer o todo” -, Morin faz uma breve descrição do problema da complexidade, começando pela afirmação de que “toda e qualquer informação tem apenas um sentido em relação a uma situação, a um contexto” (Morin, 1999b: 19). Assim, diz ele, “deveríamos ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas, umas em relação às outras” (Morin, 1999b:20). Nosso sistema educativo porém, caudatário do pensamento disciplinar da ciência moderna, é organizado sob a forma de disciplinas compartimentadas e privilegia a separação em vez de praticar a ligação. Dessa forma, o conhecimento, mesmo sobre um conjunto global, é um conhecimento parcelado14. Morin também critica a característica reducionista da ciência moderna que, presa ao objetivo de oferecer descrições cada vez mais simples da realidade, tentou reduzir o conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem, pensando que se conhecêssemos as partes poderíamos conhecer o todo15. Conforme Morin, a noção de sistema permite pensar melhor a complexidade, seja o ser humano (organismo complexo constituído por conjuntos de elementos e estruturas diversas em determinadas relações e interações), seja a sociedade (sistema complexo constituído como uma rede de comunicações recursivas). Mas é preciso desenvolver um “modo de conhecimento que permita compreender como as organizações, os sistemas, produzem as qualidades fundamentais do nosso mundo” (Morin, 1999b: 21). Para dar conta dessa exigência, Morin desenvolve a noção de sistema complexo, que articula o fenômeno da auto-organização e da relação entre autonomia e dependência.
Morin descreve o ser humano e a sociedade como sistemas dinâmicos instáveis e auto-organizados e discute uma concepção de causalidade circular, em oposição à concepção linear de causalidade assumida pela razão moderna. A causalidade retroativa, diz Morin, permite entender os fenômenos de retro-alimentação, desde o exemplo maquínico das válvulas termostáticas até a homeostase dos organismos, a nossa condição de produtos e produtores no processo da vida (entendida como um sistema de reprodução que produz os indivíduos), bem como o fato de que produzimos a sociedade que nos produz16.
Diante do fato de que não se pode mais ancorar o conhecimento em uma "filosofia primeira", que teria a chave para alcançar o "fundamento indubitável do real", e tendo em conta a noção de sistemas complexos, Morin destaca a importância de conhecer o conhecimento para alcançar a reforma do pensamento na direção de um pensamento complexo. Porém, diz ele, "se não há fundamento seguro para o conhecimento, não o há, evidentemente, para o conhecimento do conhecimento" (Morin, 1999: 24).
Para poder ir adiante na tarefa de conhecer o conhecimento Morin propõe partir do aporte de conhecimento trazido tanto pelo teorema de Gödel quanto pela lógica de Tarski, que, em resumo, propõem que "nenhum sistema cognitivo estaria apto a conhecer-se exaustivamente nem a se validar completamente a partir de seus próprios instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 24). Isso não significa abrir mão de tentar algum conhecimento, mas sim a compreensão de que a incompletude e a convivência com pontos cegos é uma condição do conhecimento. Todavia, insiste Morin, tanto a lógica de Tarski quanto o teorema de Gödel indicam que é possível de algum modo "remediar a insuficiência autocognitiva de um sistema pela constituição de um metassistema capaz de envolvê-lo e de considerá-lo como sistema-objeto" (Morin, 1999: 24).
Com esta afirmação Morin permite pensar em "conhecimento de segundo grau", que poderia tomar como objeto de exame a lógica e os princípios que regem nosso conhecimento, gerando "um sistema de metapontos de vista sobre o conhecimento" (Morin, 1999: 25), cuja constituição está em curso desde a epistemologia genética de Piaget e que deve se completar, acredita Morin, com a plena constituição de uma "ciência da cognição", que fará do conhecimento um objeto de conhecimento ao incorporar a problemática da reflexividade (Morin, 1999: 25-6) e respeitar a problemática complexa própria ao conhecimento do conhecimento17.
Com isso torna-se ao mesmo tempo necessária e possível uma reorganização epistemológica, com a constituição de uma "epistemologia complexa" cuja competência será muito maior do que a da epistemologia clássica:
"estará aberta para certo número de problemas cognitivos essenciais levantados pelas epistemologias bachelardiana (complexidade) e piagetiana (a biologia do conhecimento, a articulação entre lógica e psicologia, o sujeito epistêmico). Propor-se-á a analisar não somente os instrumento do conhecimento, mas também as condições de produção (neurocerebrais, socioculturais) dos instrumentos de conhecimento" (Morin, 1999: 31).
Assim como Copérnico mostrou que a Terra não era o centro do universo, Hubble mostrou que o universo não tem centro. A reforma do pensamento concretizada pela epistemologia complexa proposta por Morin pode ser vista como uma revolução hubbleana, já que a epistemologia complexa é uma epistemologia sem fundamento (conforme a sugestão de N. Rescher, assumida por Morin), "um sistema em rede cuja estrutura não é hierárquica, sem que nenhum nível seja mais fundamental do que os outros" (Morin, 1999: 32). A isso Morin incorpora o que ele chama de recursividade rotativa, a qual permitiria tentar uma rearticulação/reorganização do saber na qual a "epistemologia não é o centro da verdade, gira em torno do problema da verdade passando de perspectiva em perspectiva e, tomara, de verdades parciais em verdades parciais ..." (Morin, 1999: 32).
Considerada esta epistemologia sem fundamento e, portanto, a inexistência de um centro da verdade, perdemos as ilusões positivistas e superamos o desvario cientificista do positivismo lógico, mas continuamos precisando enfrentar a questão de um conhecimento desprovido de fundamentos e, portanto, a existência inarredável de pontos cegos e de impotência cognitiva. Ou seja, é preciso continuar fazendo a interrogação radical sobre as possibilidades do conhecimento e do conhecimento do conhecimento: "é impossível fundar e acabar, não somente o conhecimento, mas também o conhecimento do conhecimento, o conhecimento do conhecimento do conhecimento, e assim ao infinito ..." (Morin, 1999: 33)18.
A epistemologia complexa, ao questionar a racionalidade e a cientificidade da sociedade moderna, coloca com toda a clareza uma questão da maior importância para nossa sociedade: como dar conta da necessidade de reformar o pensamento se – como Marx já o dissera na terceira tese sobre Feuerbach – “não se pode reformar a instituição sem ter previamente reformado os espíritos, mas não se pode reformar os espíritos se não se tiver previamente reformado as instituições” (Morin, 1996: 202). Diante dessa contradição não há uma resposta propriamente lógica, mas é preciso reagir do mesmo modo que se reagiu frente ao já citado dilema de Pascal, reafirmando o pensamento complexo e a importância da contingência na construção da realidade, pois, como muito bem coloca Humberto Maturana, "nós literalmente criamos o mundo no qual vivemos, vivendo-o" (Maturana, 1999: 163)19.

Conclusão
Penso que a questão que aparece com centralidade na exposição das concepções tanto de Morin como de Luhmann é a questão da própria possibilidade do conhecimento científico20. Considerando que se conseguiu alcançar um relativo consenso sobre inexistência de uma realidade em si mesma, ou seja, a concordância de que não é possível alcançar uma realidade atrás da linguagem, o que está em jogo não é a realidade em si, mas a própria racionalidade e a pergunta que se impõe então é: quais são as condições de possibilidade do pensamento?
Tanto para Luhmann como para Morin afirmam-se a circularidade do conhecimento e da construção do mundo pela aplicação de esquemas de observação que constróem um objeto de pensamento a partir das distinções exigidas e tornadas possíveis pela aplicação da própria distinção que torna possível a observação. Também um e outro destacam a reflexividade da ciência, o retorno sobre si do pensamento pensante ou a auto-referência do sistema científico (a teoria do sistema no sistema) como um princípio necessário, que se aplica inclusive à sua própria prática teórica.
Entendo que os fundamentos epistemológicos das ciências sociais encontram-se em processo de revisão a partir de uma nova racionalidade, a racionalidade da complexidade, baseada na idéia de equilíbrios precários, indeterminação do futuro e influência do futuro sobre o presente na forma de risco e o fim das certezas (Prigogine, 1997). A racionalidade da complexidade nos leva mais próximo de mundo no qual os fenômenos são eventos temporalizados que enfrentam sucessivas alternativas do que a um mundo governado por leis universais pré-estabelecidas (Navarrete, 2004). Neste sentido, as teorias de Luhmann e de Morin devem ser referenciais importantes para a continuidade do desenvolvimento teórico da sociologia e para a construção de uma teoria que dê conta das complexidade da sociedade moderna contemporânea21.
Assim, evocando mais uma vez Edgar Morin, para quem
“o problema crucial do nosso tempo é o da necessidade de um pensamento apto a responder ao desafio da complexidade do real, isto é, a captar as ligações, interacções e implicações mútuas, os fenómenos multidimensionais, as realidades que são ao mesmo tempo solidárias e conflituais” (Morin, 1996: 201),
quero sugerir que a teoria de observações recursivas de observações num mundo policontextural pode ser o instrumento mais adequado para captar a multidimensionalidade dos fenômenos sociais, em que o todo e as partes se contém e são contidos, produzindo-se mutuamente. Ao deslocar a separação entre parte e todo pela diferenciação entre sistema e entorno como a distinção que permite qualquer operação cognitiva, Luhmann entende a sociologia como um sistema de observações de segunda ordem, capazes de dar conta da complexidade hologramática do real.
Um desenvolvimento bastante interessante no sentido da construção deste pensamento "apto a responder ao desafio da complexidade do real", de que fala Morin, seria a investigação de possíveis convergências entre a abordagem luhmanniana das possibilidades do conhecimento numa sociedade policontextural e descentrada com a noção de uma realidade "dobrada", cujo conhecimento exigiria uma abordagem multi-escópica capaz de desdobrar a multiplicidade e simultaneidade de elementos implícitos e manifestos do mundo.
Tudo isso deveria nos permitir superar o paradoxo do arco de pedras proposto por Italo Calvino:
"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
Sem pedras o arco não existe."
Italo Calvino (1993: 79)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Um comentário:

  1. Tudo isso muito lindo, especialmente Morin. Vamos aplicar a observação das observações no nosso cotidiano? Especialmente no interior das instituiçãoes educativas? E nas relações entre pares profissionais?

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