segunda-feira, 2 de março de 2009

Por que EaD? A formação do professor, o modelo de ensino e a necessária qualificação dos espaços de interação acadêmica

Introdução
A disseminação das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) em diversos âmbitos da vida social tende a tornar mais aceitável e mais trivial o uso da telemática para diversas atividades, entre elas, estudar/ensinar/aprender. Este fenômeno coloca-nos diante da necessidade de pensar sobre a capacitação do professor para trabalhar com as TIC – seja na educação presencial, seja na EaD –, sobre a própria infra-estrutura tecnológica colocada à disposição do professor e dos estudantes na sala de aula presencial e sobre o tipo de interação educativa que é possível desenvolver com a utilização dessas tecnologias, tanto na educação presencial como na EaD. Afinal, nas duas modalidades é preciso haver formação para a tecnologia, formação didática, domínio de temas e conteúdos e a capacidade de motivar, liderar e coordenar os estudantes1.
Considerando este quadro, parece oportuno refletirmos sobre as possibilidades de ampliação e qualificação dos espaços de interação didático-pedagógica. Como meu conhecimento e meu interesse de pesquisa rerstringem-se à universidade, penso que seria mais apropriado falar em espaços de interação acadêmico-científicos, considerando o papel central da pesquisa científica na educação universitária2.
Para dar conta desse propósito inicio o presente texto com alguns questionamentos sobre a escola e o professor hoje e sobre as necessidades de formação do professor para dar conta de um tipo de relação de ensino-aprendizagem que se concretiza numa concepção de aula universitária como um contexto de aprendizagem que propicia uma interação educativa complexa e significativa. Depois disso, faço uma descrição de como se ensina na universidade hoje, apresento uma breve caracterização do que pode e precisa mudar no modelo de ensino da universidade brasileira com a adoção da EaD e concluo explicitando uma concepção do professor universitário como um intelectual erudito, capaz de pensar a ciência, a educação e a sociedade.

A escola e o professor hoje
A imensa quantidade, complexidade e diversidade de informações com as quais as crianças lidam e têm contato no nosso tempo, obrigam a escola e os educadores a reavaliar as metodologias de ensino e as estratégias pedagógicas, a rever as expectativas sobre as competências e capacidades esperadas do aluno, e a repensar profunda e honestamente o papel da escola e do professor. Sem as reformulações necessárias, corremos o risco de ter escolas irrelevantes para os alunos e, conseqüentemente, formar maus cidadãos e profissionais mal preparados.
Então, qual é o papel da escola no novo contexto cultural e tecnológico da sociedade contemporânea? E qual deve ser o papel do professor nesta nova escola? O novo paradigma educacional sugere que a escola seja um ambiente especialmente criado para a aprendizagem, rico em recursos, que possibilite às crianças e aos adolescentes a construção do seu conhecimento seguindo o seu estilo individual de aprendizagem. O professor precisará deixar de ser um mero mantenedor da ordem e transmissor de técnicas e informações para se transformar em um guia, um mediador, um companheiro do estudante na busca da informação e na sua interpretação crítica com vistas à construção de um conhecimento significativo.
A função do professor, nessa proposta, assemelha-se mais à de um líder ou coordenador. Enquanto o professor tradicional geralmente traz para o processo ensino-aprendizagem as informações prontas para serem transmitidas, o coordenador trabalha e pensa junto com os estudantes, criando e mantendo a comunicação para a formação de uma helicoidal de conhecimentos, atuando como um mediador entre os estudantes e a tarefa, removendo barreiras que dificultam o conhecimento, sugerindo problemas que estimulam a curiosidade e a imaginação, lembrando a importância do registro das observações e dos pensamentos, auxiliando no processo de aprendizagem e moldando um contexto de aprendizagem para a turma que ele lidera (um sistema auto-organizado composto por professor-alunos-espaço-materiais e suas interações).

A formação do professor
Nos deparamos então com a questão fundamental da formação do professor. Vamos tentar apresentar esse tópico por meio de três séries de perguntas:
Que entendemos como um bom professor? Quais foram os professores que marcaram na nossa graduação? Por que lembramos deles? O que os distinguiu dos demais? Por que eles foram especiais? O que identificamos na nossa prática docente que podemos atribuir à influência deles?
Como se aprende a ser professor? Onde e como se dá a formação de professores? Como são os cursos de licenciatura? Como é a prática de ensino? Como são os estágios? O que é didática? Como se aprende didática? Qual o peso das disciplinas de formação geral no currículo dos cursos de formação de professores? E das disciplinas da formação específica (profissional)?. O que é formação geral e o que é formação específica na formação de um professor ou professora? Qual a formação que temos, na graduação, para trabalhar com ferramentas da informática? Com navegadores, processadores de texto e de imagem, geradores de gráficos e de mapas conceituais? Com correio eletrônico?
O que é uma formação de qualidade para professores? No que reside a qualidade dos cursos de boa qualidade na área de formação de professores? Como se verifica a qualidade no trabalho docente?

Trabalhando já há 20 anos com futuros professores (inclusive alguns colegas da Unisc foram meus alunos de graduação, ainda na década de 80 do século passado) posso afirmar que todos eles na fase de aprendizagem querem técnicas, macetes, dicas. E pedem receitas e material pronto para usar, muito material que possa ser “aplicado com a minha turma lá na escola”. E todos, ou a maioria, reclamam que a universidade não os formou para dar conta de toda a complexidade da vida real - por isso, uma expressão corrente na sociedade diz que é na prática que se aprende, ou seja, só se aprende de verdade depois que já terminou a formação (o período no qual se deveria aprender). Enfim, os professores/as queixam-se que a universidade não os preparou devidamente, no seu processo de formação, para enfrentar a sala de aula, para enfrentar o inesperado que surge todos os dias. A escola procura prever e enquadrar tantas e tantas situações que o inesperado passa a ser algo absolutamente assustador. E os professores então demandam receitas, técnicas e macetes para usar em aula tentando com isso conjurar todas as possibilidades de erupção do inesperado – ou seja, de criação, de invenção, de descoberta, de investigação, de desequilíbrio criativo, de complexificação.
Para acabar com o apego aos receituários os formadores de professores precisariam trabalhar com o inesperado na sala de aula. Quando dizemos "Vou preparar uma aula", a frase já mostra como o inesperado está fora da aula – comumente, entende-se que uma aula bem preparada deve prever todas as atividades e o tempo de cada uma delas, mesmo que isso não deixe tempo para a contribuição dos alunos. Eu, ao contrário, penso que o máximo que poderíamos dizer é "Vou me preparar para a aula". O que vai ser a aula? Não dá para saber, é imponderável (um sistema auto-organizado de interações educativas opera como um sistema longe do equilíbrio, que precisa modificar-se constantemente para permanecer operando). Preparar-se para a aula é estar aberto para as múltiplas possibilidades que podem surgir no processo de comunicação entre seres humanos (estudantes e professores, adultos e crianças) e pronto para selecionar entre essas possibilidades múltiplas, aquelas que melhor se adequam, no momento, para o processo de aprendizagens e descobertas que se quer provocar. Preparar-se para o imponderável, mais que um paradoxo, é um profundo e difícil exercício de abrir-se para o outro num diálogo verdadeiro e de estar atento para o presente e para a contingência que é a comunicação humana. Isso, certamente, não combina nem com aulas magistrais e palestras, nem com estudo dirigido e memorização, mas é claro que também não significa improvisação: é indispensável ter um roteiro de trabalho e muita clareza do que se quer com a aula e do que é preciso fazer para obter o resultado previsto.

A aula universitária
Para observar a aula como um evento comunicativo constitutivo da escola e da universidade3 é importante ter clareza sobre os fatores condicionantes da situação de aula. A seguir me dedico a tentar fazer uma descrição de aula válida para o ambiente universitário.
Começamos por caracterizar o fenômeno: a aula entendida como segmento semanal de um programa de 17 encontros de aproximadamente 3,5 horas-aula cada (registre-se que a hora aula não é equivalente à hora relógio). Simultaneamente à aula precisamos dar conta de uma multiplicidade de outras atividades, desejos e premências (inclusive outras aulas, de outras disciplinas). Mesmo se deixarmos de considerar todas as demais dimensões da vida de cada um e nos ativermos apenas ao ambiente acadêmico, fica evidente a complexidade, fragmentação e simultaneidade do trabalho desenvolvido: estudantes e professores precisam atender em torno de 5 disciplinas diferentes, muitas delas sem nenhuma conexão ou relação entre si; existem períodos em que acumulam-se as provas a prestar ou a corrigir, os trabalhos e pesquisa que têm prazo para concluir. É preciso comparecer a reuniões, assembléias, colegiados, etc. enfim, atividades as mais diversas se sobrepõem, não se articulam e podem até parecer ou vir a ser contraditórias e contraproducentes. E em meio a isso tudo temos a aula: 3,5 horas por semana com cada turma (ou com cada professor, do ponto de vista dos alunos).
Para que se obtenha algum aproveitamento em termos de construção de conhecimento nesta situação adversa, é preciso um pacto bastante explícito sobre investimento de tempo, esforço e desejo. Desejo, aliás, é o componente mais importante deste investimento. Primeiro, porque é o desejo que dá sentido ao esforço e ao investimento de tempo. Mas, principalmente, porque ou há um desejo de saber, de descobrir, de aprender, ou não há construção de conhecimento possível4.
Vou tentar deixar mais claro como eu entendo que precisa ser uma aula em um curso universitário. Deve ser um ambiente que propicie um elevado nível de troca entre professor e alunos e destes entre si. A aula (as 3,5 horas semanais que passamos juntos em sala de aula) deve ser um momento de discussões e debates intensos e profundos, cujo combustível - idéias, dúvidas, perguntas, afirmações, documentos, dados, fotos, textos, filmes, etc - precisa ser produzido, pesquisado ou localizado geralmente fora da sala de aula: na biblioteca, no laboratório, nos corredores da universidade, no bar, na rua, em casa, no ciberespaço. Então: para uma aula tão curta e com tanta coisa para processar, comparar, sintetizar, redigir, é básico que tanto professores como estudantes estejam muito bem preparados. É preciso preparar-se para a aula: produzir material, pesquisar, pensar, produzir reflexões. Leitura, observação e reflexão são fundamentais. Além de muito trabalho e de muita concentração nas poucas horas de sala de aula, é preciso, para que a aula funcione, que tanto professor como estudantes dediquem no mínimo um tempo equivalente ao tempo em sala para as atividades extraclasse nas quais se amadurece, se consolida e se aprofunda o trabalho desenvolvido em sala de aula5. Desse modo as aulas tornam-se pontos de partida e pontos chegada dos diversos momentos do processo de ensino-aprendizagem. Em aula iremos propor questões, pensá-las, tentar descobrir a melhor maneira de equacioná-las, confrontar nossos caminhos e tentativas, ver até onde conseguimos chegar e tentar melhorar, sempre aperfeiçoando nossos procedimentos e nossos conhecimentos. Diante disso o bom professor não é aquele cujas aulas são tão bem organizadas que podem ser copiadas e transformadas em uma apostila para os alunos estudarem, lerem e passarem na prova. Ao contrário, é aquele que, em vez de despejar conteúdo/informação, pergunta. Faz perguntas, estimula/provoca os alunos a fazerem perguntas e orienta/facilita a caminhada dos alunos na busca por respostas. E problematiza essas respostas, para que tornem-se outras perguntas que gerarão mais respostas e mais perguntas. Se este trabalho é bem sucedido, se aprendemos a identificar as perguntas que fazem a diferença, as eventuais respostas irão transformar-se em novas perguntas e assim sucessivamente pela vida toda.
Por fim, a aula é também um constante processo de auto-avaliação no qual se precisa superar a histeria em torno da prova, da nota e da eventual reprovação. Embora os momentos de verificação de aprendizado existam e talvez até precisem ser ritualizados, o fundamental é existir uma avaliação permanente que seja ao mesmo tempo uma auto-avaliação permanente. Isso, claro, é coisa que ainda precisamos (alunos e professores) aprender a realizar6.

Quem ensina, como se ensina e o que se ensina na universidade?
Em seu "relatório sobre o saber nas sociedades informatizadas", Jean-François Lyotard considera que o saber tem duas vertentes: a de produção de novos conhecimentos, a investigação científica, e a da transmissão dos conhecimentos estabelecidos, o ensino. Sobre o ensino superior ele afirma especificamente:
"Admitida a idéia de que existem conhecimentos estabelecidos, a questão da sua transmissão subdivide-se pragmaticamente numa série de perguntas: Quem transmite? O quê? Para quem? Com que suporte? De que forma? Com que efeito? Uma política universitária é formada por um conjunto coerente de respostas a estas perguntas." (Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa, Gradiva, s.d., p. 94)

A partir desta série de perguntas é possível, como fez Lyotard, tecer considerações bastante importantes para a pensar os desafios da universidade na sociedade contemporânea e as modificações necessárias na universidade para que ela possa dar conta do desafio. Vamos repetir as perguntas de Lyotard mantendo o foco no nas práticas do professor na sala de aula presencial no ensino superior brasileiro: Quem transmite? O quê? Para quem? Com que suporte? De que forma? Com que efeito?

Como resposta teremos uma descrição do modelo predominante de ensino na universidade brasileira: a transmissão oral de conteúdos teóricos feita por um professor para algumas dezenas de alunos, com o suporte de quadro-negro e retroprojetor. Ainda que sempre seja necessário fazer a ressalva de que qualquer generalização está sujeita a equívocos, é possível afirmar que as formas orais de transmissão do conhecimento predominam no ensino universitário. Considerando-se o espaço da sala de aula temos três práticas acadêmicas predominantes: a aula expositiva, o seminário e a aula prática. Todas as três utilizam basicamente a oralidade para suas finalidades pedagógicas. Ao fazer uma etnografia das formas de transmissão do saber na universidade em seu livro "Práticas acadêmicas e o ensino universitário" o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto caracteriza assim cada uma estas três práticas acadêmicas:
aulas expositivas: "aulas onde as informações provêm do discurso professoral, sem que os alunos tenham necessariamente um conhecimento prévio sobre elas" (Pinto: 199:55).
seminários: "aula onde é feita uma apresentação de um tema, por um ou alguns alunos, tendo como objetivo a sua posterior discussão por todos" (Pinto, 1999:65)
aulas práticas: "aquelas nas quais a dimensão prática de um saber é ensinada através da sua demonstração por parte do professor, ou de uma execução feita pelo aluno sob a supervisão do mesmo" (Pinto, 1999: 71).

Pode-se perceber por estas definições que todas as três práticas acadêmicas referidas "têm como resultado um reforço da autoridade do discurso professoral como fonte de saber" (Pinto, 1999: 82). Considerando-se a oralidade como o principal meio de transmissão de informações e conhecimento no ensino universitário temos o discurso professoral como a principal técnica pedagógica utilizada na transmissão do saber. Uma decorrência bastante comum disso é a associação do saber oralmente transmitido à figura do professor que o transmite. Outra decorrência é que a oralidade passa a ser a única forma de acesso ao saber professoral. Isso deve-se, especialmente, pela ausência de publicações e pela dificuldade de acesso aos textos escritos.
E com isso chegamos a uma outra característica do ensino universitário atual e que decorre do predomínio quantitativo da aula expositiva nos cursos de graduação e do predomínio da oralidade como forma de transmissão do saber nas aulas expositivas: a ausência de leitura. Ainda que sejam indicados textos para leitura prévia, estes textos são lidos por poucos alunos, dos que leram, muitos têm dificuldade de compreender o texto e, para completar o quadro, o texto, mesmo que sirva de referência para a exposição do professor, não é lido e trabalhado na aula. Como os alunos não sabem ler textos acadêmicos e como esta leitura não é ensinada, acabam por não ler. Como os textos não são trabalhados na sala de aula, o importante passa a ser anotar e/ou gravar a fala do professor, que acaba por ser a única informação que o aluno consegue acessar. Seria necessário aprofundar esta descrição e fazer a crítica deste tipo de ensino superior. Penso que caberia retomar as considerações sobre o ato de estudar feitas pelo Paulo Freire (Freire, 1998), especialmente os aspectos referentes a autonomia, capacidade de reflexão e articulação, para observar as práticas acadêmicas contemporâneas.

E o que muda com a EaD?
Em princípio, tudo. Ou nada. Depende do que entendemos por EaD. Hora de retomar as leituras sobre os diferentes modelos e gerações de EaD. Assumo aqui, como modelo mais adequado de EaD o modelo baseado em uma aprendizagem colaborativa sustentada por ambientes de aprendizagem interativos construídos por meio de redes de computadores. Uma característica importante deste modelo, baseado em salas de bate-papo, mensagens on-line, listas de e-mail, fóruns eletrônicos e tele-conferências, é o predomínio da escrita como meio privilegiado de troca de informações e de produção de conhecimento. Note-se que das ferramentas citadas acima, apenas a tele-conferência vale-se da oralidade, sendo todas as demais baseadas na escrita. O modo de organizar o pensamento por escrito é diferente da organização do pensamento para expressão oral. As ferramentas disponíveis num ambiente EaD como o descrito acima estimulam a troca de mensagens horizontais (entre os estudantes), o que os coloca frente à necessidade de se fazerem entender por escrito (e de entenderem as mensagens escritas que receberem). A definição tecnológica de entrada das mensagens por ordem de postagem tira (ou enfraquece fortemente) a prioridade de fala do professor.
Por outro lado, a organização do curso, a definição dos conteúdos/saberes/conhecimentos a serem trabalhados, a escolha dos textos de referência, a sequencialização do curso, a sua forma de apresentação, as atividades a serem desenvolvidas, etc, continuam sendo uma atribuição do professor. A diferença na EaD é que tudo isso chega ao aluno mediado por uma tecnologia que exige a formação de uma equipe de trabalho. Com isso o professor não é mais o único detentor de um saber academicamente legitimado que está envolvido na elaboração do curso/disciplina. E portanto não é mais o único a decidir sobre a organização do processo de aprendizagem7.
Ainda um último aspecto sobre este modelo de EaD: o tempo. A dissociação temporal é um fator talvez mais importante do que a distância espacial. O fato de que ferramentas como fóruns, mensagens eletrônicas e e-mails são assíncronos também contribui para relativizar a predominância do professor. Os alunos podem agora comunicar-se entre si ou buscar informações por conta própria ou acessar as fontes indicadas pelo professor antes de darem retorno ao professor, antes de continuarem a leitura da intervenção do professor, antes de escreverem o seu trabalho (o que é, convenhamos, diferente da dinâmica da aula presencial, em que o tempo, o ritmo, é definido pelo professor ou pelo relógio).

Tentando uma síntese provisória
Temos hoje uma situação no ensino superior em que ocorre o predomínio da transmissão de conhecimento de forma oral em aulas expositivas e a legitimação do discurso professoral como forma privilegiada de transmissão dos conhecimentos estabelecidos. Evidentemente há uma série de discussões sobre a (im)possibilidade de transmissão de conhecimentos e mesmo da existência ou não de um estoque de conhecimentos estabelecidos e que devam ser ensinados na educação superior. Contudo, independentemente dos achados das ciências da educação e da cognição sobre como se aprende, independentemente da importância, unanimemente reconhecida, do aprender a aprender, independentemente dos notáveis aportes das epistemologias construtivistas, é fato que, em cursos de graduação para formação de profissionais, há sim um conjunto previamente delimitado de conhecimentos que serão ensinados aos alunos em aulas expositivas com utilização de quadro-negro e apresentações multimídia. Assim sendo, parece bastante aceitável a proposição de Lyotard, já citada anteriormente, de que a política pedagógica universitária passa pela formulação de um conjunto coerente de respostas a perguntas do tipo “quem transmite? o quê? para quem? em que suporte? de que forma? com que efeito?”.
Temos também uma crescente insatisfação, por parte de professores, estudantes, especialistas e autoridades, em relação ao ensino existente. Nos últimos anos esta insatisfação tem sido acompanhada pela expectativa de que a resolução de parte dos problemas da educação superior se dará pela adoção massiva da EaD. Na comunidade de professores da Unisc envolvidos com EaD a educação a distância tem sido vista inclusive como uma possibilidade de catalisação de mudanças substanciais também nas práticas acadêmicas na sala de aula presencial8.
Contudo, para poder potencializar mudanças na prática do professor a partir da EaD e orientar futuros cursos de capacitação de professores é preciso ter claros os objetivos da educação superior, ter claro o que se quer transmitir e como se concebe o conhecimento e a aprendizagem, assim como ter claras as diferenças entre a educação presencial e a EaD.
Eu destacaria como principais diferenças o aspecto assíncrono da EaD e o fato de suas comunicações serem baseadas na escrita, em oposição à instantaneidade e oralidade da aula presencial. Esta distinção permite pensar o que se exige do professor em cada situação, bem como comparar os efeitos e a eficácia das duas formas9.
Aceitando-se que a esmagadora predominância da oralidade e da aula expositiva são problemas a resolver nos cursos de graduação no Brasil, seria então o caso de estudar em detalhes o papel/lugar do professor nas propostas de EaD baseadas na interatividade, na comunicação escrita e na aprendizagem colaborativa para tentar transpor para a educação presencial algumas destas caraterísticas, de forma a podermos chegar a uma aula universitária que seja um momento de chegada para uma série de interrogações e ponto de partida para outros tantos questionamentos, e na qual o estudante e o professor tenham papéis ativos na construção de formas colaborativas de aprendizagem.



Um programa de estudos sobre o lugar do professor nas propostas de EaD baseadas na interatividade e na aprendizagem colaborativa

1.O papel do professor na EaD
1.1.O papel do professor na educação presencial
1.1.1.as mudanças desse papel na sociedade contemporânea
1.1.2.as tecnologias na aula presencial
1.1.3.a relação do professor com as tecnologias
1.1.4.as transformações na sociedade
1.1.5.o novo professor necessário para a nova sociedade
1.1.6.qualidade em educação
1.2.As especificidades da EaD
1.2.1.ambiente de aprendizagem
1.2.2.mediação tecnológica
1.2.3.equipe multidisciplinar
1.3.O lugar do professor na equipe EaD
1.4.A relação do professor de disciplina a distância em curso presencial com a equipe EaD
1.5.O papel do professor e a tutoria

2.O aluno de EaD:
2.1.O estudante universitário
2.1.1.o aluno de um curso todo a distância
2.1.2.o aluno de uma disciplina a distância num curso presencial
2.2.Características
2.2.1.motivações e interesses
2.2.2.acesso e familiaridade com tecnologia
2.2.3.maturidade intelectual
2.2.4.capacidade de estudar e auto-disciplina
2.3.Qual o conhecimento prévio que o aluno tem sobre EaD?
2.4.Que tipo de introdução a EaD o aluno terá?
2.4.1.Será presencial ou a distância?
2.4.2.Será oficina ou disciplina?
2.4.3.Qual será sua duração em horas?
2.4.4.Vai ocorrer antes ou durante o desenvolvimento da minha disciplina?
2.4.5.Quem e quando vai ensinar o aluno a usar as ferramentas disponíveis no ambiente EaD?
2.5.Sem ter acesso a um curso a distância sobre EaD, o nosso aluno terá condições de aproveitar todo o potencial de uma aula a distância? Terá condiçoes de perceber/imaginar este potencial? Terá motivaçao para ir adiante?

3.Operacionalizando a EaD na perspectiva do professor
3.1.Como construir minha disciplina para oferta a distância?
3.1.1.conteúdos, atividades, materiais,
3.1.2.estratégias metodológicas
3.1.3.escolhas pedagógicas
3.2.Como atuar como professor de uma turma a distância?
3.2.1.Como organizar uma equipe: tutores, monitores, assistentes, especialistas em informática e telemática?
3.2.2.Como professor de disciplina a distância em curso EaD eu terei uma equipe para dar assistência ao estudante? Em que nível (tecnológico, pedagógico)?
3.3.Como oferecer esta disciplina a distância para todas as turmas matriculadas (as minhas e as de outros professores)?
3.3.1.Quem define o material, conteúdo, atividades, estratégias?
3.3.2.Quem atua como tutor?
3.3.3.Quem avalia os alunos?
3.4.Como transformar uma turma de alunos em uma comunidade virtual de aprendizagem?
3.4.1.Qual o papel do professor nessa transformação?
3.4.2.Qual o papel do aluno nesta transformação?
3.5.Como o aluno vai encarar nossa proposta de disciplina a distância?10


Quase um anexo: o professor universitário como um intelectual erudito (seja cientista, artista, filósofo ou tecnológo)
O programa de estudos esboçado nas páginas anteriores poderia ser a base de uma reflexão sobre EaD que permita a nós professores maior clareza sobre esta modalidade de educação que parece ser o caminho escolhido pelas universidades para a sua expansão nesta primeira década do século XXI. Contudo, ao ser apresentada pela primeira vez no contexto do curso on-line sobre EaD para professores da Unisc, esta proposta encontrou algumas resistências que concentraram-se especialmente em torno de uma suposta dificuldade que os professores de outras áreas que não as ciências humanas teriam para a discussão destes tópicos.
Obviamente não compartilho dessa visão e insurjo-me contra a divisão da universidade em “duas culturas”, a das humanidades (uma cultura “cultural e humanista”) e a das ciências da natureza e engenharias (uma cultura “tecno-científica”). Penso que não tem fundamento a perspectiva segundo a qual os professores das “humanidades” estariam mais à vontade nessa discussão porque os temas e textos disponíveis são da área das ciências humanas. Penso que não são. Penso que a discussão é sobre educação e tecnologia, sobre as transformações no papel do professor devido à introdução de NTIC na educação, sobre o processo de construção do conhecimento em ambientes virtuais ou através de processos de comunicação mediados por redes de computadores. Ora, o que nós temos em comum, nesta discussão é o fato de que todos somos professores. Portanto, qualquer que seja a área de conhecimento de nossa formação acadêmica, todos temos algo a dizer (seja de leitura, seja de vivência) a respeito da prática de professor. Qualquer um de nós, por ser professor, tem algo a dizer sobre ser professor. E sobre como esse ser professor é afetado (com maior ou menor intensidade) pela introdução das novas tecnologias. Do mesmo modo, como trabalhamos com isso todos os dias - seja ensinando alunos, seja orientando pesquisas de estudantes de graduação ou de pós-graduação ou ainda conduzindo pesquisas e coordenando equipes de trabalho e monitores - também temos algo pensado e algo a dizer sobre como se conhece e como se produz conhecimento.
Entendo que a ciência é uma só em seus princípios básicos. Portanto, todo/a cientista ou pesquisador/a universitário/a (seja ele/ela sociólogo ou astrônomo, biólogo ou geógrafo) precisa ter uma reflexão epistemológica e, portanto, necessariamente tem de realizar certas leituras indispensáveis (alguns gregos pré e pós socráticos, os modernos como Popper, Kuhn, Bachelard, alguns pós-modernos, alguma coisa sobre a teoria da complexidade e sobre as epistemologias construtivistas etc) para orientar sua prática. Da mesma forma, os principais métodos usados na comunidade científica são comuns às ciências humanas e às ciências naturais.
Assim, penso que os dois grandes temas do programa de estudos proposto acima são a) o ofício de professor e b) a produção do conhecimento no contexto da sociedade informacional. Isso pode ser formulado assim:
a função do professor nos programas de EaD baseados em ambientes de aprendizagem colaborativa construídos através de redes de interações mediadas por redes de computadores;
as possibilidades da construção (individual ou coletiva) de conhecimento através da constituição de comunidades de aprendizagem construídas através de redes de interações mediadas por redes de computadores.
Claro que é possível formular isso de um modo mais simples. Com essa formulação quis alcançar um maior nível de generalidade, mas isso precisa ser melhor especificado de modo a chegar a questões mais concretas, que são as questões que estão em pauta no cotidiano do trabalho docente hoje em dia, seja qual for a área de conhecimento do professor. Portanto, a discussão afeta a todos e todos têm a mesma possibilidade de participar dela, assim como as mesmas dificuldades.
Evidentemente que sei que nada que "afeta igualmente" uma comunidade afeta verdadeiramente "igualmente" a todos os membros dessa comunidade. Cada um tem seus recursos individuais, a sua trajetória, as suas estratégias, as suas preocupações, as suas necessidades, os seus gostos, as suas relações, cada um ocupa posições diferenciadas e tem, por isso, perspectivas diferenciadas. Certo, claro, mas, mesmo considerando todas estas especificidades, a discussão sobre o conceito de educação e sobre a função e a responsabilidade do professor é uma discussão que já devia fazer parte da prática reflexiva de cada um (mesmo que em níveis diferentes) ainda antes de o tema da EaD ser colocado em pauta.
Trata-se de algo que está no horizonte das preocupações e das práticas de todos nós pelo simples fatos de sermos professores universitários: o que é ser professor?, o que é educar?, o que é orientar?, o que é formar profissionais?, o que é formar cidadãos?, o que é formar cientistas? Estas são questões que nos afetam a todos e para as quais, com certeza, cada um de nós, em diferentes situações e condições, já se viu obrigado a ter respostas para poder continuar trabalhando.
Assim, nenhum de nós, simplesmente por ter formação acadêmica nessa ou naquela área do conhecimento tem, em príncipio, mais facilidade ou autoridade para fazer esta discussão. Cabe lembrar que este tipo de questões vêm sendo debatidas há um bom tempo na área da administração e nas diferentes ciências organizacionais assim como nas engenharias, na área da comunicação, na informática. Os primeiros a formar comunidades virtuais e fazer trabalho colaborativo foram engenheiros e cientistas das chamadas hard sciences. Quem propõe a mais aguda discussão sobre o tempo na modernidade é um prêmio Nobel de química, o Illya Prigogine. E as reflexões mais interessantes sobre educação nos últimos tempos giram em torno da obra do Maturana, que é biólogo e chama a sua área de biologia do conhecimento. E por falar em biólogo que escreve sobre educação, lembremos de Piaget. Ou de Gregory Bateson, biólogo que tornou-se sucessivamente antropólogo e psicoterapeuta e desenvolveu uma teria da aprendizagem bastante complexa.
Claro que por trás de tudo têm os filósofos, muitos filósofos. Mas os filósofos, para poder participar da discussão com os cientistas, precisam dar conta do pensamento científico, do tratamento das evidências empíricas, das descobertas mais importantes da física, da química, da biologia, da lingüística, da antropologia etc. E os cientistas, por seu lado, têm de dar conta de ler filosofia. Prigogine, por exemplo, abre o prólogo de seu livro "O fim das certezas" citando Popper. E faz uma referência a Epícuro no primeiro parágrafo do primeiro capítulo. Cientistas tratam de filosofia, filósofos debatem as possibilidades da ciência, pedagogos estudam neurobiologia, sociólogos estudam cibernética, administradores estudam psicologia, matemáticos estudam lingüística, lingüistas estudam antropologia, físicos estudam teologia etc. Todos saindo de seus nichos e buscando conexões holísticas em seus conhecimentos.
E com isso tento concluir (ainda que provisoriamente) esta intervenção que já se estende para além do razoável. Mas não sem antes explicitar o que os dois parágrafos anteriores deixam implícito: assumo, como premissa de toda a reflexão, uma concepção de professor universitário como um intelectual erudito, em condições de participar de debates sobre epistemologia, métodos científicos e concepções pedagógicas, e ao mesmo tempo com um agudo senso de responsabilidade cidadã com o seu tempo e a sua comunidade e com um profundo domínio de seu campo de saber. No caso específico da EaD (mas provavelmente não apenas para EaD) também é requisito fundamental para este professor um amplo domínio das ferramentas tecnológicas específicas, um bom conhecimento da lógica informacional e alguma afinidade com o mundo virtual propiciado pela internet.


Referências:
ANDRADE, LA.B, LONGO, W. P. & PASSOS, E. Autonomia: um modelo explicativo para a ontologia da universidade. Universidade e Sociedade (ANDES), Brasília, v.21, p.73-84, 2000.
CASTELLS, Manuel. Internet y libertad. Lección inaugural del curso académico 2001-2002 (http://www.uoc.edu/web/esp/launiversidad/inaugural01/index.html). Universitat Oberta de Catalunya, outubro de 2001.
CHAUÍ, Marilena. Sobre a Universidade. São Paulo: Unesp, 2001
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1998.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, s.d.
MATURANA, H & VARELA, F. A árvore do conhecimento. Campinas, Editorial Psy II, 1995.
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Práticas acadêmicas e o ensino universitário. 1999

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